Anatomia Frozen, um retrato real da violência cega

Encenação põe personagens num ciclo repetitivo de desejo e de sofrimento

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Por Mariangela Alves de Lima
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A experiência milenar do cristianismo lapidou, em sucessivos concílios, a definição do pecado irremissível. Para que um homem se coloque à margem do perdão divino é preciso, em primeiro lugar, que saiba distinguir o bem do mal. Outras condições se impõem e não é fácil satisfazê-las: ter a firme resolução de praticar o mal, persistir no erro e, por último, não se arrepender e tornar-se, desse modo, incapaz de invocar o perdão divino. Enfim, é dificílimo perder a alma e essa aparente leniência impregna de tal modo a civilização ocidental que os sistemas filosóficos, as instituições e as religiões que, ao longo da história, discordam dessa inesgotável paciência divina cedo ou tarde abandonam o debate ético e partem direto para a punição exemplar. A Igreja Católica, aliás, fez isso com um cinismo igualmente exemplar entregando "ao braço secular" os que não se curvavam cegamente às suas normas. E é exatamente esse silêncio em torno do mal o tema implícito e a formalização da escritura da peça de Bryony Lavery. Atos cuja malignidade não se pode discutir são os que, de fato, desafiam o esmalte tênue da civilização. São três personagens em Anatomia Frozen (interpretadas por Joca Andreazza e Paulo Marcello) que, em certo sentido, resumem a cadeia de acontecimentos desencadeada pela perversidade de um sequestrador, torturador e assassino de menininhas. Há a fala do homem que cometeu esses crimes, a intermediação de uma psiquiatra que funciona como uma espécie de elo e, na outra ponta, a vítima, uma mãe em estado de intenso sofrimento por anos a fio. Talvez não haja, para a imaginação habitualmente catastrófica dos pais, nada pior do que a criancinha que sai à rua desfilando inocência e nunca mais volta. Sobre esse terror secreto ou proclamado a peça não lança o menor disfarce. Bastaria o título Anatomia (o adjetivo em inglês soa redundante e pedante) para identificar o procedimento do texto. Do ponto de vista dramatúrgico, só a descrição do estado mental do criminoso e da tensão psíquica da vítima representam adequadamente a magnitude do acontecimento. Especulações, debates e mesmo diagnósticos - tal como o faz a psiquiatra - encontrariam sua expressão no domínio estruturado do drama realista ou naturalista, em cujo substrato persiste a ideia de progresso e da utilidade dos embates dialógicos. Mas não fariam justiça ao horror intenso e sem artifício da psicopatia. Nesta peça filiada a uma tendência que o teatro de língua inglesa vem explorando desde Harold Pinter, a confiança no poder transformador da interlocução está ausente da estrutura do texto. As personagens em cena estão isoladas nas respectivas pontas de um triângulo que o espetáculo dirigido por Márcio Aurélio sublinha ao deixar claro que não se dirigem umas às outras, mas ao espaço indeterminado diante delas. Uma vez que não discutem, não pensam sobre o significado das coisas, não decidem e, sobretudo, permanecem presas ao ciclo repetitivo do desejo e do sofrimento, poderiam ser apenas um retrato fixo e bastante fiel da violência cega da psicopatia. Outra coisa, no entanto, que não pretende nomear-se e argumentar, movimenta as figuras em cena em direção a um ponto de confluência. A estilização "cirúrgica" do espetáculo, inspirado na brancura das salas de anatomia, evita a contaminação pelo sentimentalismo (tentação do realismo psicológico que espreita nosso teatro) e imprime um tratamento neutro à interação final entre criminoso e vítima. Sob o silêncio da descrença há alguma coisa que não se chama mais justiça e, no entanto, lateja. Serviço Anatomia Frozen. 90 min. 14 anos. Teatro Imprensa. Sala Vitrine (48 lug.) Rua Jaceguai, 400, Bela Vista, telefone 3241-4203. 5.ª e 6.ª, às 21 horas. Ingressos R$ 10 (preço único). Até 28/8

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