Amores de Puccini

Documentos revelam casos extraconjugais e herdeiros não reconhecidos do compositor de óperas italiano, autor de La Bohème e Tosca, nascido há 150 anos

PUBLICIDADE

Por Anthony Tommasini
Atualização:

Quando Giacomo Puccini morreu em 1924 aos 65 anos, deixou como herança uma propriedade estimada em US$ 250 milhões, em valores atuais. Será que algum compositor de música clássica dos dias hoje chegou a reunir, em vida, tamanha fortuna? Desde sua morte, a popularidade de Puccini só cresceu. Encenada 1.200 vezes, La Bohème está no topo da lista de obras mais apresentadas do Metropolitan Opera, que inclui nas suas primeiras 6 posições outras duas obras de Puccini, Tosca e Madama Butterfly. Assim, é curioso que não se tenha feito muito estardalhaço por conta do 150º aniversário do nascimento de Puccini, celebrado este ano. Mas não importa. Puccini domina. Até agora, neste ano de Puccini, aquilo que mais chamou a atenção para a vida do compositor foi a realização de um filme sobre a sua vida particular, uma dramatização elaborada com base em pesquisas recentes e dirigida pelo cineasta italiano Paolo Benvenuti. Artigos antecipando as descobertas dessas pesquisas foram publicados no The Independent, em Londres, e em outros veículos. Evidentemente, a neta do compositor, Simonetta Puccini, está consternada e reluta em crer na nova versão dos fatos. O mais alto tribunal civil da Itália há muito confirma as alegações da sra. Puccini (antes chamada de Simonetta Giurumello) de que ela seria a filha de um relacionamento entre a sua mãe e o filho do compositor, Antonio, morto em 1946, tendo deixado viúva, mas nenhum descendente legal. Hoje, a sra. Puccini supervisiona fundação à qual deu início, dedicada à preservação da quinta de Puccini em Torre del Lago. Puccini orgulhosamente chamava a si mesmo de "vigoroso caçador de aves selvagens, libretos de ópera e mulheres atraentes". O filme de Benvenuti, Puccini e la Fanciulla, apresenta um fio recém-descoberto na confusa biografia do compositor. O enredo afirma que ele tem outra neta viva, Nadia Manfredi, descendente de um outro filho seu, também chamado Antonio, nascido de um caso com Giulia Manfredi, uma mulher vivaz de origem humilde que administrava um albergue em Torre del Lago e muito popular entre os agricultores locais e caçadores itinerantes. Cartas pessoais e outros documentos mostrados a Benvenuti por Nadia Manfredi em 2007 expõem aquilo que parece ser um caso convincente. Também estão sendo lançadas novas gravações de suas óperas. Dois notáveis registros de La Bohème foram recentemente lançados em CD, gravados a partir de concertos realizados no ano passado. A edição da Deutsche Grammophon tem a soprano Anna Netrebko como Mimi e o tenor Rolando Villazón como Rodolfo, com regência de Bertrand de Billy. O lançamento da Telarc conta com a performance da Sinfônica de Atlanta, regida por Robert Spano, com a soprano Norah Amsellem e o tenor Marcus Haddock no elenco. Apesar de Puccini ter demonstrado um incrível instinto para a mistura da música com a dramatização, suas óperas são o produto de um trabalho torturado. Eterno protelador, ele só conseguia compor durante frenéticas madrugadas inteiras, abastecidas por café e cigarros. Na verdade, levando em consideração a astuta sensibilidade de Puccini para o drama musical, é surpreendente perceber como suas idéias iniciais podiam ser mal concebidas. Ao adaptar as histórias de Murger que acabariam se tornando a ópera La Bohème, por exemplo, ele queria eliminar a briga e a separação entre Mimi e Rodolfo. Numa carta em tom de súplica endereçada ao editor de Puccini, o libretista Luigi Illica expressou sua exasperação. Puccini estava determinado a transformar a trágica história dos jovens amantes pobretões em um pegajoso melodrama. "Eles se apaixonam, eles discutem, a pequena costureira morre", escreveu ele. "É uma história sentimental, mas não é La Bohème." Puccini ao final acertava na maioria de suas óperas, mas não antes de despejar uma torrente de abuso sobre seus libretistas, cujo sofrimento era contínuo. A amplitude dramática e a riqueza lírica da música de Puccini por vezes eclipsam a complexidade da sua linguagem harmônica contemporânea. Admirador de Wagner e Debussy, ele enriqueceu suas trilhas sonoras com acordes cromáticos livres e escalas de tons inteiros. Ele demonstrava muito interesse nas correntes radicais da música moderna, sentia-se intrigado pelos experimentos de Arnold Schoenberg. Percorreu os 100 quilômetros de Torre del Lago até Florença apenas para assistir a uma apresentação de Pierrot Lunaire (1912), experiência que lhe causou profunda impressão. E quanto às novas fofocas sobre a vida amorosa de Puccini? Como já é bem sabido, seu relacionamento com a esposa, Elvira, foi sensacional desde o início. Puccini a conheceu ainda esposa de um antigo amigo seu dos tempos de escola, em 1884, quando trabalhava como seu professor de piano. Começaram um caso e em questão de dois anos ela deixou o marido. Permitiu-se a Elvira que levasse consigo a filha. Logo ela teve de Puccini o seu único filho, Antonio. Mas com o marido de Elvira ainda vivo, obter um divórcio seria impossível na Itália. Durante os anos que passou com Elvira, Puccini viveu flertes despudorados com seus "pequenos jardins", conforme ele chamava as jovens com que se envolvia. Até que, em 1903, o marido de Elvira morreu. As impacientes irmãs de Puccini o fizeram desistir de uma paixão que vivia na época e se casar com Elvira, o que ele finalmente fez em 1904, depois de terem vivido juntos por 17 anos. Com o passar dos anos, Doria Manfredi, uma jovem da região, entrou no lar de Puccini como empregada. Enciumada, a volátil Elvira a atormentava, castigando-a em público e criando um escândalo, apesar dos protestos de Puccini alegando sua inocência. Em janeiro de 1909, a pobre e acuada Doria morreu de uma overdose de pílulas. Apesar de Elvira ter sido condenada por difamação, o pagamento de uma compensação de Puccini para a família Manfredi poupou sua esposa da prisão. Uma autópsia revelou posteriormente que Doria morreu virgem. Assim, neste caso, Puccini era de fato inocente. Esta parte da história há muito está registrada. Mas novos documentos, revelados pelo filme de Benvenuti, sugerem que apesar de Puccini não ter se envolvido com Doria, ele protagonizou um longo caso com a prima dela, Giulia, que pode ter sido a inspiração para Minnie, a heroína de La Fanciulla del West. O filho que Giulia teve com Puccini era vigia noturno e morreu na miséria aos 65 anos, em 1988, sem jamais saber da sua herança. Sua filha, Nadia Manfredi, foi aos tribunais exigir a realização de testes de DNA para provar que ela é neta de Puccini. Simonetta Puccini opõe-se ao pedido, chamando-o de ataque à vida particular do mestre e da sua família. Até o momento, parece que a legislação italiana apóia a afirmação dela de que o caso já teria prescrevido. O caso continua. Nós, amantes de Puccini, temos que reconhecer que nosso ídolo não sai dessa história com a honra intacta. Ainda assim, esse enredo daria uma excelente ópera de Puccini, se ao menos ele ainda estivesse entre nós para escrevê-la.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.