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Amigos morrendo sozinhos

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Por Redação
Atualização:

Estava em Goiânia, no hotel, meu filho André telefonou: - Pai, uma notícia triste! Otto Stupakoff morreu! Ele sabia de minha amizade pelo Stupakoff. André, como fotógrafo, admirava o Otto, queria um dia conhecê-lo, prometi apresentar, nem tivemos esse tempo. Dentro de uma hora eu estaria no palco para falar aos professores da rede estadual sobre O Menino Que Vendia Palavras, um livro que vem conquistando escolas porque há três personagens principais, a professora, o menino e seu pai. Uma professora dos anos 40, rígida e disciplinadora, daqueles anos em que os mestres podiam chamar a atenção dos alunos, podiam reprovar, dar notas baixas, enviar à diretoria, suspender por alguns dias sem serem agredidos pelas crianças ou jovens, sem serem processados pelos pais. Professores tinham tempo de preparar aulas, prazer em formar cabeças. Naqueles minutos que antecedem a conversação desviei meu pensamento para o Otto, encontrado morto em um flat, sozinho, vitimado por um ataque cardíaco. Não estava bem, mergulhado em tristeza, depressão. Desde que regressou ao Brasil, após décadas no estrangeiro, anos e anos nos Estados Unidos, Otto não se encontrava, aceitava trabalhos, planejava, sabia o que queria, não conseguia executar. Lembro-me de uma bela matéria de moda para a Vogue que ele idealizou magistral, na hora de produzi-la a cabeça falhou, era o princípio de Alzheimer se manifestando. No entanto, Bob Wolfenson entrou em cena, executou o editorial exatamente como Otto teria feito e entregou as fotos para que o amigo as assinasse, afinal tinha sido uma obra concebida por ele. Um gesto amigo desprendido e grandioso, raro e generoso, inusitado hoje em dia no campo da criação, onde todos se pegam. Já se foram três semanas desde a morte de Otto. Pela minha cabeça passaram imagens dele em Guarujá nos anos 60, com a primeira mulher, linda, e os filhos, também bonitos. Ele era então o máximo em matéria de fotografia de moda, exuberante, efervescente, o gênero estava sendo iniciado no Brasil, ele montando paradigmas. Todo mundo queria ter um portrait feito pelo Otto. Seu estúdio na Rua Frei Caneca era um point de gente famosa, gente bonita, descolada, inteligente. Época em que as figurinhas eram trocadas entre Otto, David Zingg, Lew Parrella, Yllen Kerr, George Love, Maureen Bisilliat, todos hiper. Otto deixou o Brasil e nos Estados Unidos chegou a fotógrafo da Casa Branca. Tem obras no MoMA, de Nova York, no Masp, de São Paulo, no Museu Hague, da Holanda, suas fotos foram leiloadas no Christie?s de Londres. Uma vida pelo mundo, um novo casamento com uma miss Universo, e suas imagens em todas as publicações importantes de moda e de fotografia. Fez também um esmerado fotojornalismo, como provam suas fotos do Camboja, exibidas na Academia de Ciências de Nova York. Tragédias pessoais fortes marcaram aquele homem alto, sedutor, sempre agarrado à sua câmera. Fiquei impressionado com sua luta para combater o câncer que avassalou sua mulher, acho que a terceira, na qual gastou todas as economias e empréstimos, e quando ela se viu curada, morreu em um acidente de carro. Conheci Otto por meio do Thomaz Souto Corrêa, um de seus amigos mais próximos. Era como que um clã, Otto, Zaragoza, Wesley Duke Lee, Lídia, mulher do Wesley, Thomaz, Aurélio Martinez Flores. Uma jovenzinha seguia o movimento, Gloria Kalil. Meses atrás conversamos longamente ao telefone, Otto me contando como fez as fotos que deram à lanchonete Frevinho, da Augusta, próxima à Rua Luís Coelho, a atmosfera de praia e verão. Queria renovar as fotos, modernizá-las. Ele esticava a conversa, de repente se tornava impreciso, incoerente, precisava de um interlocutor, queria alguém que o ouvisse. Viveu só e triste os últimos meses. Ainda que tenha tido instantes de glória, como o livro editado pela Cosac Naify, recentemente, e a compra de seu acervo pelo Instituto Moreira Salles. Em 2006, na Galeria Paparazzi, um momento de euforia com o belíssimo Rioerótico, uma antologia de fotos de impressionante sensualidade como poucas vezes se viu sobre o Rio de Janeiro. Ele conseguiu tornar sensuais até as folhas de árvores. O livro aqui está em minha mesa. Mostra que Otto apenas se foi, não morreu. Escrevi em um caderno pessoal: Otto Stupakoff foi encontrado morto. Nos deixou em pleno sono. Sozinho. Não tinha ninguém ao lado, após anos rodeado por tanta gente, pelas pessoas mais incríveis. E subitamente me lembrei de outro amigo, João Antonio, o escritor, companheiro de viagens pelo Brasil inteiro, encontrado em seu apartamento na Praça Serzedelo Correia, no Rio de Janeiro. João estava morto há dez dias e em adiantado estado de putrefação. Os amigos estão morrendo sozinhos, pensei. Logo recebi um e-mail de Thomaz Souto Corrêa: "Fui ao velório. Fora os filhos, pouca gente. E de nós, só tínhamos nós dois." Nós, era o grupo antigo. Nós dois queria dizer, ele, Thomaz, e o Otto. Que me seja dado não morrer só; que alguém me leve até a janela para olhar o sol.

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