Algemado - Final

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

Quando, numa clara noite de verão fui com Celeste tirar os meninos da cadeia de South Bend, esperava encontrar uma delegacia imunda e um policial obviamente interessado em agravar o caso. Como poderia pensar de outro modo, se todas as minhas experiências com a polícia no Brasil tinham sido desse tipo? Mas no momento em que entramos no prédio e fomos recebidos com polidez por um impecável agente da lei, que nos informou claramente a situação dos nossos filhos, tivemos aquele grato alívio que explicava a calma dos amigos americanos com quem compartilhamos o caso. "Não se preocupem", diziam eles naquela tranqüilidade que a sociedade americana receita para quem está nervoso e pode ultrapassar os limites do bom senso com um gesto de impaciência que bota tudo a perder. Pagamos a fiança e ouvimos que pelo prazo de seis meses os dois não poderiam envolver-se com a polícia novamente. A falta cometida fora pequena e não tinham ficha. Ficamos tranqüilos. Na sociedade americana, lidar com a polícia era tão trivial como aturar as discordâncias dos amigos. Aliás, era parte dela, pois o espetáculo da polícia que chega com alarme, meia dúzia de automóveis, sirenes e luzes vermelhas está dramatizando os limites, face a um sistema individualista e igualitário. Você tem o direito a ser feliz, dizem, mas por favor, escolha que tipo de felicidade você deseja, senão é algemado. As algemas da memória trouxeram minha estréia com os policiais do Norte. Foi em Cambridge, Massachusetts, depois de um jantar, quando eu, orgulhoso com o meu Ph.D., dirigia meu primeiro carro, um velho fusca verde utopicamente enfeitado com as flores plásticas de um "paz e amor" hippie. Fui parado por uma patrulha cujo guarda, chamado Otoni, me questionou sobre a placa do veículo: faltava a etiqueta correspondente ao ano de 1970, prova de que eu não havia quitado a licença. Seguindo a receita de minha cultura, "inventei" que não sabia do imposto, enquanto minha cabeça gritava o seguinte: absurdo esse guardinha me parar por causa de uma insignificante etiqueta de imposto, enquanto os assassinos e os bandidos estão roubando e matando em nossa volta? Meu pensamento hierárquico e antiigualitário reproduzia,com a inocência dos néscios em democracia, o argumento brasileiro trivial que consiste exatamente em ver o mundo em gradação. Minhas faltas são menores que as suas. Eu roubei, é verdade, mas o Dr. Gatuno, ex-governador da província mais "muderna" do país, que faz campanha eleitoral de dentro da prisão onde come churrascos, roubou muito mais do que eu. Claro que pequei mortalmente, mas é um mortal de primeira hora; os dele, entretanto, são rotineiros. Se eu não tiro, outro vai fazê-lo. Um mundo verticalmente organizado faz pensar em graus: primários, secundários, terciários e por aí afora. O mesmo ocorre no terreno da graça e do milagre, que é o "Você sabe com quem está falando?" do além e o jeitinho dos santos, dos diabos e dos anjos da guarda. Aqui, há sempre o próximo e o distante. Os amigos do peito, os mais ou menos, os adversários; os inimigos e os f.d.p.! Para eles, damos de presente esse Otoni que, como agente da lei, me colocava diante do mentir ou falar a verdade. Essa verdade que, entre nós, é um privilégio a ser contada somente para o pai e a mãe, para amigos íntimos e, às vezes, para a mulher amada, porque, afinal, ela também precisa de uma "boa" mentira. - Não minta!, falou um Otoni veemente. Você é um estudante de doutorado de Harvard. É muito esperto; não tem desculpa para não saber dessa regra! Fiz como os romanos. Confessei a verdade. Disse que havia comprado o carro. A culpa não era minha, mas do meu vizinho que não havia cumprido a lei. Otoni, como um Salomão do asfalto e da modernidade, foi tão magnânimo com a verdade quanto havia sido duro com a impostura do privilegiado harvardiano, que fingia não saber; e que, sabendo, usava o seu saber para impingir, enganar e tirar partido de tudo, como manda a ideologia brasileira. Caro leitor, eu poderia terminar com algumas piruetas e elipses (ou eclipses) sociológicas, mas não tenho mais paciência com a minha sociologia de jornal, nem com o meu narcisismo que, como viram, dura pouco. A moral desta história que precisa de um final, mas vai ficar sem a admoestação que todos, sobretudo os de esquerda e direita, tanto adoram, é que, lá, o policial é um dos nossos; aqui, ele é um "deles". PS: Ser algemado com as mãos para frente é bem melhor do que pelas costas. Fala quem viveu o drama. Certamente a nossa Polícia Federal algemava pela frente porque isso dava mais conforto ao acusado, sobretudo aos bandidos de alto nível que, brancos, ricos, ex-ministros, banqueiros e doutores, mentem usando suas finas, limpas e bem tratadas mãos.

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