Alemães, paulistanos e Barack Obama

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Por Matthew Shirts
Atualização:

Começou com um email do Justin, amigo meu irlandês que trabalha na redação da National Geographic em Washington D.C. Chegou endereçado ao Omar, editor da revista na Cidade do México, com cópia para mim. Trabalho na edição brasileira, aqui em São Paulo. Justin queria conselhos. A edição americana da National revisava seu manual de estilo e discutia a melhor maneira de se referir à população latino-americana que hoje vive nos Estados Unidos - ou seja, cubanos, mexicanos, hondurenhos, haitianos, salvadorenhos e brasileiros, entre outros. A palavra que consta no manual, antigo, é "hispanics", hispânicos. Mas, segundo Justin, já lhe soa ultrapassada, a ele e a todo mundo na edição americana da revista. Traz uma conotação colonial sem sentido atualmente. Além do que, afirmava em tom de pergunta para mim, nem sequer descreve o passado colonial brasileiro, que não é hispânico e, sim, luso ou ibero. As opções da revista eram "latino" ou "latin". Mas ele queria saber nossas opiniões, a do Omar e a minha. Perguntou como os brasileiros que vivem nos EUA se chamam ou gostariam de ser chamados. Respondi com um longo email. Expliquei, em resumo, que os brasileiros têm uma identidade nacional forte e que os imigrantes nos EUA costumam se chamar de "brazucas". Isso provocou uma saraivada de correspondência. Justin se entusiasmou com a palavra. Pedi cautela, uma vez que o substantivo sequer consta dos dicionários de português, muito menos do Webster?s. Omar teceu considerações. Escreveu que os mexicanos nos EUA provavelmente gostariam de ser chamados de americanos, a não ser quando se reúnem para comer tortilhas e guacamole (molho apimentado de abacate). Notei que, para os brasileiros, tortilhas e guacamole são mais exóticos que sushi e sashimi, surpreendendo tanto Omar como Justin. A identidade nacional em um mundo globalizado se complica. Nisso, meu amigo irlandês quis saber como eu, norte-americano residente no Brasil, costumo ser chamado. Tenho diversos apelidos, contei. "Gringo" é um deles. "Americano" é outro. Também já fui chamado de "Bigode", referência aos pelos faciais que cultivei durante anos. Mas que o meu favorito de todos os tempos era, sem dúvida, "Alemão". Omar perguntou se eu me ofendo ao ser tachado de gringo. Nada, respondi, desde que seja pronunciada com afeto, como costuma acontecer por estas bandas. Justin achou o apelido de "Alemão" engraçadíssimo. Escreveu que me considerava de baixos teores germânicos. Expliquei que o apelido se aplicava a qualquer estrangeiro de pele mais clara e traços "nórdicos". Holandeses, suecos, americanos e ingleses, somos todos "alemães" no Brasil. "Como o jogador da Seleção de 1986", lembrou Justin com propriedade. "Sim", retruquei, orgulhoso com a comparação. A facilidade com que se lida com diferenças de origens e tons de pele é uma qualidade da cultura local, pensei mais tarde, refletindo sobre a troca de correspondência. Só mesmo aqui um jogador - argentino - pode ser preso por racismo ao ofender outro, brasileiro, conhecido pelos amigos e fãs como Grafite. Existe um código próprio e popular para lidar com distinções físicas. O nome Grafite é afetuoso, tal como Gringo ou Alemão. Os americanos têm mais dificuldade para conviver com diferenças físicas. Apegam-se a regras mais formais, pelo menos. Mas talvez isso comece a mudar amanhã, com a posse de Barack Obama. É um grande passo para um futuro pós-racial. A população mundial, desconfio, vai ficar cada vez mais parecida com a da cidade de São Paulo.

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