Álbum de Família

Autor de sucessos como As Centenárias e Agreste, Newton Moreno encena[br]peça de Nelson Rodrigues com sotaque pernambucano e à luz de Gilberto Freyre

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Por Beth Néspoli
Atualização:

A prática é a mesma da trupe do famoso Théâtre du Soleil dirigido por Ariane Mnouchkine: depois da peça, o público pode jantar no próprio teatro pratos preparados, e servidos, pelos atores. As receitas são escolhidas sempre de acordo com o tema da montagem em cartaz. Só que desta vez a realização é bem brasileira, levada a cabo pelos artistas criadores do espetáculo Memória da Cana, que estreia hoje no Espaço dos Fofos. O título pode soar desconhecido, mas é livre adaptação de uma obra-prima de Nelson Rodrigues, Álbum de Família, em encenação assinada pelo pernambucano Newton Moreno, mesmo autor de As Centenárias e Agreste, dois espetáculos com longas temporadas de sucesso e atualmente em cartaz na cidade. Nessa montagem preparada ao longo de muitos meses por todos os integrantes do grupo Os Fofos Encenam, fundado por Moreno, o espectador vai ser transportado para dentro da casa da família formada pelo patriarca Jonas, sua mulher Senhorinha, seus filhos e uma tia solteirona. Uma mesa de 13 metros toma o espaço de representação, que não é um palco convencional, na casa que o grupo transformou em sua sede. Nas duas laterais dessa grande mesa estão situados os quartos dos personagens delimitados por véus transparentes. Dentro desses nichos o público se acomoda e dali pode ver os outros quartos e, sobretudo, toda a ação que transcorre bem diante de seus olhos, em torno da mesa. Em cada quarto - o espectador escolhe em qual ficar - há um pequeno prólogo, intimista, diferente para cada personagem. Toda essa família vai falar com sotaque nordestino; mais do que isso, usará expressões típicas como ?visse?, entre outras, dessa região que também dará sabor aos pratos servidos no jantar. Não é mero efeito de superfície. Há um fundamento para tal imersão no universo patriarcal e rural dos engenhos de cana. O retorno às origens é tema fundador dessa peça de Nelson Rodrigues, ele próprio pernambucano de nascimento. Álbum de Família é uma daquelas tragédias de Nelson Rodrigues que flagra o ser humano na fronteira entre a civilização e a selva. E o faz pelo tabu do incesto. É um marco civilizatório. Toda cultura tem lá um mito, uma narrativa, uma história para falar dessa interdição. Em toda parte do mundo, quando essa barreira é ultrapassada, o que acontece frequentemente em casos de degradação pela miséria ou ignorância, o homem volta a ficar próximo da fera, sua origem. Se levarmos em conta as medidas de tempo do universo, pode-se dizer que o ser humano tirou ontem o pé da selva. É o que nos lembra Nelson Rodrigues ao narrar a saga dessa família que aos poucos implode numa regressão aos tempos imemoriais. Desde o início da peça, Nonô já é o selvagem, o filho que enlouqueceu e vive nu, pelos matos, não por acaso sempre ?rondando? a casa grande, com seus urros de fera. O desafio para quem encena essa peça é encontrar o humano no mítico, é propiciar ao espectador a identificação com os membros dessa família bizarra. E, a julgar pelo ensaio acompanhado pelo Estado, foi justamente o que o grupo conseguiu de melhor com sua cuidadosa elaboração, uma sofisticada operação artística sobre o texto. A ideia de transpor essa saga para o Nordeste começou ainda na criação de outro belo espetáculo dessa companhia, Assombrações do Recife Velho, que tinha como fonte de inspiração a obra de Gilberto Freyre. Por conta disso, atores e diretor debruçaram-se sobre a extensa obra desse sociólogo. "Eu já tinha vontade de encenar Álbum de Família e quando reli a peça junto com Casa Grande & Senzala senti que dava eco. Havia relação entre o universo opressivo dos engenhos e essa família patriarcal rodriguiana. E subitamente tudo ecoava: a falta de função das solteironas, o poder do pai, a opressão das mulheres", diz Moreno. Dessa ?descoberta? veio uma outra ideia, criar um álbum de família a partir das memórias dos atores, quase todos pernambucanos, tendo como base a peça do Nelson Rodrigues e como filtro os estudos de Freyre. "Mas seria informação demais", desistiu Newton. Daí, o que o espectador acompanha agora é uma montagem de Álbum de Família ?filtrada? pela memória dos atores. O texto, em cena, é a peça original, na íntegra. Muda o ?jeito? de falar, as expressões. "Mas é o Álbum, não a história dos atores, mas dos personagens. Eu digo que a memória de cada um dos intérpretes serviu para ?vestir? as figuras em cena, é a melhor imagem para mim. Essas vivências estão lá, mas ficaram por dentro, dão estofo às criações, são internas." Bem, não apenas. Por exemplo, em cada um dos nichos o espectador verá elementos - ainda que sem o saber - que saltaram das histórias pessoais para os personagens. Assim, sente-se cheiro de naftalina na matriarca vivida por Luciana Lyra. Talvez os mais distraídos nem notem, mas junto com seu colar de pérolas ela tem outro de naftalinas, lembrança do uso que sua avó paraibana fazia desse artefato criado para espantar baratas. Ela tem ainda um outro colar, mais macabro, de dentes, e desse o público vai descobrir a origem numa cena. E logo vai identificar o comportamento cruel da elite rural dissecada por Freyre. Gestos como o barbear do patriarca feito pela solteirona foram colhidos na memória familiar de Marcelo Andrade, o Jonas. Outros já sugeridos pelo autor, como o duro abraço entre pai e filho, ganharam em intensidade e emoção a partir da memória afetiva. Prática comum na Europa, porém rara, talvez inédita no Brasil, o processo de criação desse espetáculo foi filmado em cada uma de suas etapas, com requinte de detalhes pelo cineasta Evaldo Mocarzel. Entre as imagens, um ensaio feito num engenho de cana em Pernambuco. "Era o expressionismo de Nelson na luz causticante do Nordeste. A filmagem atravessou o ano, será um filme único", diz Mocarzel.

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