Agô tece seu fino bordado com as cores solares

No terreno do ritual, apresentação une candomblé com santeria cubana

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Por Crítica Helena Katz
Atualização:

Não é um show, e também não é um espetáculo de dança contemporânea com música ao vivo. Fruto de uma parceria inédita entre o músico Guga Stroeter e os coreógrafos Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira, Agô, Dança Contemporânea, em cartaz na Sala Crisantempo até domingo, mistura esses dois formatos e inaugura um outro, em gestação, para a relação música-dança. O que singulariza esse produto estético, ainda sem nome, é que ele se instaurou porque duas propostas artísticas semelhantes, mas inteiramente apartadas (a música de Guga Stroeter e a dança de Ângelo e Ana Catarina) foram postas, pela primeira vez, para se relacionar. E o convívio se tornou possível porque tanto a dança quanto a música operam no mesmo viés, que é o de propor relacionamentos entre erudito e popular. Uma pesquisa ocorre na música de Cuba, e a outra, nas danças do Nordeste brasileiro e do balé clássico. O ambiente no qual se adentra é o do ritual e, aos poucos, conduzido pelo iorubá das letras das canções, a presença do candomblé brasileiro e da santeria cubana vai, mesmo que indiretamente, tonalizando o espaço. A dança é chamada à cena por palmas, que a acordam do chão/terra - uma metáfora usual nesse tipo de cerimônia, na qual a dança é aquilo que vem das entranhas, vai brotando e tomando os corpos. É a primeira vez que essa dupla de pesquisadores de dança cria para um grupo e, ao fazê-lo, prova que o vocabulário que vem construindo em suas obras (Somtir, Outras Formas, Clandestino, O Nome Científico da Formiga) funciona bem em outros corpos. Agô, Dança Contemporânea conta com oito bailarinos das mais diversas formações e, cada qual à sua maneira, naturaliza no seu corpo as misturas propostas. Por permitir que as singularidades fossem preservadas, confirma que aqueles movimentos que vêm sendo inventados por Ângelo e Ana Catarina têm possibilidade de se enriquecer quando nos fluxos em mão dupla com outros corpos. O processo de mistura, ao passar para os oito competentes intérpretes, neles se esgarçou e abriu novos claros - como um bordado, parecido com o das rendas que estão nas paredes e nas projeções, e que vão vestindo o espetáculo com a delicadeza dos padrões de seus desenhos. As cores solares dos figurinos exalam uma energia que vai bem com a demanda da coreografia criada. Todavia, o fato de ter sido pautado pela convencional separação masculino/feminino, sem propor nenhuma variação e sem experimentar as contaminações possíveis, despotencializa a mestiçagem - justamente o traço a unir dança e música em Agô. Felizmente, o elenco consegue não pasteurizar as misturas nas duas danças. Primeiro, pela pluralidade dos tipos físicos que reúne. E também porque há um modo singular de cada qual realizar os mesmos passos que o outro. Uma permanente tensão entre indivíduo e coletivo percorre toda a obra e vai amarrando a sucessão das cenas. Coreograficamente, Agô aponta para a necessidade de uma continuidade, para que possam vir a se desenvolver os traços que nele surgiram como, por exemplo, a construção de volumes no espaço e no corpo. Orquestra e cantores desempenham lindamente os seus papéis, e o elenco de dançarinos contagia com a sua vitalidade. O CD Agô, um projeto de Guga Stroeter com a Orquestra HB, existe há seis anos, fruto de uma pesquisa musical de Ari Colares e Sapopemba, em arranjos jazzísticos assinados por Dino Barion. Agora, ressurge em um espaço sonoro de tamanha coerência que acaba por levar a platéia a se sentir fazendo parte. E as vozes da cantora cubana Liena Centeno e de Sapopemba pontuam com grande força esse entretecer que também faz dos desenhos sonoros que se vão montando uma outra renda. Talvez o trânsito ainda sem nome que Agô, Dança Contemporânea realiza possa vir a se constituir em uma estratégia de formação de público. Quem desenha o ambiente é a música, mas quem conduz é a dança. Esse tipo de codependência é o mais intrigante dessa muito bem-sucedida combinação recortada entre voz, texto, música e dança. Quem sabe, esteja nascendo entre nós, e com uma cara própria, na língua da dança contemporânea, o futuro do videoclipe.

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