PUBLICIDADE

Adaptação brasileira de Cardenio é auto-irônica

Folias cumpriu à risca dever de transpor a peça para a realidade cultural do País

Por Beth Néspoli
Atualização:

Uma vez que quem conta um conto aumenta um ponto, a notícia chegou assim aos meios teatrais: pesquisador de Harvard encontrou um fragmento de Cardenio, peça perdida de Shakespeare, de 1613, e está convidando grupos de 20 cidades do mundo inteiro para criar um espetáculo a partir desse fragmento. No Brasil, o escolhido é o Folias, que já ensaia sua montagem de Cardenio, sob direção de Marco Antonio Rodrigues, para estrear no dia 20. Nem tudo é invenção nessa história. Como se pode ler abaixo, há registros da estreia de uma peça chamada Cardenio no Globe Theatre, no dia 20 de junho de 1613, escrita a quatro mãos por William Shakespeare e seu jovem assistente John Fletcher. Ao que tudo indica, o manuscrito se perdeu antes da primeira compilação das obras do bardo, em 1623. Em 1727, Lewis Theobald teria encontrado o original e o adaptado no espetáculo Dupla Falsidade. Esse último serviu de base para um projeto do doutor e pesquisador da Universidade de Harvard Stephen Jay Greenblatt. Em parceria com o dramaturgo norte-americano Charles Mee, ele criou nova adaptação de Cardenio. E, com apoio de uma fundação, também um projeto que prevê montagens em vários países. "A proposta é que cada grupo se aproprie do texto e o adapte à sua cultura", diz o diretor do Folias. Greenblatt virá ao Brasil para a estreia. "A estrutura do texto que recebemos, a adaptação de Greenblatt, é a da peça dentro da peça. Há uma cerimônia de casamento no campo e os pais do noivo trazem de presente para a festa uma peça perdida de Shakespeare, para ser representada para os convidados", diz Rodrigues. O jogo de espelhamento comum nas comédias de Shakespeare se faz presente: os noivos reconhecem a si mesmos no casal da suposta peça de Shakespeare que representam, e isso os leva a mudar seu destino. "Ficamos sabendo desse projeto por Pedro Schwarcz, ator do elenco de Querô (peça do Plínio Marcos encenada no Folias)", diz Rodrigues. A julgar pela leitura do texto e pelos dez minutos de ensaio permitidos à reportagem do Estado, os artistas do Folias não se fizeram de rogados no que diz respeito à transposição cultural. O tom irônico aparece já no prólogo, no inglês propositalmente tosco do ator Val Pires, cujo personagem é um serviçal, mas pode ser também o tal pesquisador de Havard no jogo de dupla identidade que perpassa todo e espetáculo. A festa de casamento foi transferida para a Serra da Cantareira, mas permaneceram do original, nas frases dos personagens, os vinhedos e olivais da região italiana da Umbria. O contraponto cômico se estende aos paralelos entre a dificuldade de encontrar o local da festa e à localização do teatro, no centro degradado da cidade. Nem mesmo Greenblatt escapou do humor do grupo (leia no trecho ao lado), cujos atores não perderam a oportunidade de rir de si mesmos, por meio da crítica à precariedade da atividade teatral no Brasil. Significativamente, os pais do noivo pretedem gravar um piloto para a TV. "E esperam ganhar mais dinheiro de Havard com isso." Por que aceitar tal convite? "Estamos vindo de duas montagens bastante difíceis, pesadas, Oresteia e Querô. E há meses preparamos o próximo trabalho, Êxodo, cujo tema é o indivíduo exilado dentro de seu próprio território", explica Rodrigues. "Esse convite representa um respiro para o grupo, a possibilidade de brincar com uma comédia romântica." A proposta era uma leitura dramática. "Recebemos U$ 25 mil; valor insuficiente para uma encenação, mas achamos que não valia a pena todo o trabalho da adaptação para uma leitura apenas. Vamos botar no palco."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.