''''Acreditava no amor e nos amigos''''

Biógrafo fala da intérprete que assentou sua carreira em raízes afro-brasileiras

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Por Francisco Quinteiro Pires
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Na tarde deste sábado, o carioca Vagner Fernandes, de 35 anos , participa da festa de lançamento de Clara Nunes - Guerreira da Utopia no Portelão, na Rua Clara Nunes, 81, no Rio. É o mesmo local onde viu Clara Nunes pela primeira vez, em 1981. Tinha 9 anos . Em 2003, achou num leilão imagens gravadas por um fã que mostram a mineira em atuação. Resgatou aquele episódio da infância e iniciou pesquisas sem compromisso. O resultado é a primeira biografia da cantora que entrou para o panteão da MPB. Leia a seguir trechos da entrevista. Ouça trechos de canções interpretadas por Clara Nunes Por que resgatar a biografia de Clara Nunes neste momento? As pessoas da nossa geração desconhecem a história da Clara. A idéia que têm dela é a da mulher linda vestida de branco, com um repertório que remete à umbanda. Na biografia, trago à tona o lado humano de uma vida pontuada por dissabores. A admiração pela mulher que descobri atrás das roupas brancas se aprofundou. Quem é essa mulher? Uma mulher consciente, apesar das turbulências na infância, como a morte dos pais, na adolescência, como o assassinato cometido pelo irmão, e da ida a Belo Horizonte. A guerreira da utopia não tem a ver com uma cantora alienada nem sonhadora. Utopia se apresenta não como algo distante, mas concreto, passível de realização. A Clara era insegura? Insegura é a pessoa sem certeza do que está fazendo. E ela tinha certeza que daria certo o que fazia. Acreditava nos amigos, no amor, no seu canto como instrumento de conciliação e na arte como veículo de transformação social. O que ela representou para a música popular brasileira? A obra dela é de uma atemporalidade absurda. Canto das Três Raças (1976) e Esperança (1979) são discos que dão a impressão de terem sido feitos agora, de tão bem produzidos. Paulo César Pinheiro tinha um cuidado com os trabalhos que até hoje eles são vistos como referência. Clara foi a cantora que quebrou o tabu de que mulher não vendia discos. Gravou gente, como Nelson Cavaquinho e Candeia, cujas músicas ficaram para posteridade. Era detalhista na escolha dos repertórios, o que enriqueceu a obra. Paulo César Pinheiro foi fundamental na carreira de Clara? Ele ensinou a Clara o que ela poderia de fato alcançar como cantora. Ela não ficaria restrita à condição de sambista. Com Paulo César Pinheiro, ela percebe que tem uma potência vocal incrível. Depois da fase das músicas românticas, dos boleros, da Jovem Guarda, quando era submetida aos caprichos da Odeon, Clara teve a sensibilidade de que tudo isso não daria certo. Ela começa a dar um salto qualitativo, quando se vê cantando samba. Ela sugere o Adelzon Alves nos anos 60 para produzir um disco com sambas, e a Odeon acata. Adelzon propõe um trabalho para preencher a lacuna deixada por Carmen Miranda no que se refere a uma afro-brasilidade visual e sonora. Clara promove um resgate disso. No fim dos anos 70, Clara Nunes se tornou mais ativa politicamente. Clara se tornou uma mulher mais consciente do seu papel social. Com as viagens a Angola e Cuba e a atuação ao lado de Chico Buarque e João Bosco, ela começou a ter contato com outro aspecto da vida. Ao participar do Clube do Samba, fundado por João Nogueira e Austregésilo de Athayde, ela sabia se envolver em uma frente de resistência à invasão da música estrangeira no começo dos anos 80. Nesse processo, Clara lutava para mostrar que a nossa música tem muito valor para as gerações futuras. Nos anos 60, ela não tinha essa consciência, não queria se ligar aos tropicalistas, ainda mais depois de gravar a música Apesar de Você, quando foi considerada subversiva e teve de cantar hino de exaltação ao exército. Como a Clara lidou com a condição de mulher independente, famosa, e o apego a valores sociais, como o casamento e a família? Embora estivesse bem à frente do seu tempo, ela queria ter filhos e casar. Clara era independente, mas idolatrava a maternidade, a ponto de ter profundas crises de depressão quando abortava. O casamento e a família eram muito importantes para ela. Lidava com tudo isso de forma bem contraditória, mas com sensatez. Nunca colocou a família acima dos interesses profissionais, mas quando se descobria grávida ela pegava mais leve. Apesar da capacidade de auto-superação, Clara se abalava fácil. Os altos e baixos eram muito constantes. Os amigos mais íntimos contam que ela tinha crises de choro no camarim. Ela era uma pessoa de uma sensibilidade absurda. Por ser reservada, não contava ao marido o que ocorria para não aborrecê-lo. Pouquíssimos amigos sabiam detalhes sobre momentos de tristeza e sofrimento. Mas se as crises apareciam, vinham com tudo, e ela tentava superá-las com trabalho. E com a religião? Clara era extremamente espiritualista. Era o brasileiro de verdade, com todo o sincretismo. Comungava na igreja católica, ia ao terreiro de umbanda para tomar passe e fazia orações em centro kardecista. As contradições não são algo negativo. A mídia fez várias especulações sobre o motivo da morte da Clara Nunes. Como julgar esse processo? O Paulo César Pinheiro pediu que não divulgassem que ela estava em coma. Mas Clara não estava em coma, porque teve morte cerebral em decorrência de um edema. Os médicos só descobriram a morte cerebral 15 dias depois, porque o tomógrafo da clínica estava quebrado. E isso contribuiu para a mídia especular. Diante da dificuldade de explicar o que de fato tinha acontecido, preferiu-se bater na tecla do erro médico. Choque anafilático é muito complexo de explicar, porque não se descobre com precisão que substância provocou a reação alérgica. A mídia cumpriu o seu papel, na medida em que as informações que lhe chegavam não eram capazes de esclarecer os fatos. As especulações diziam que Clara foi fazer um aborto, que apanhou do marido, que se submeteu a uma inseminação artificial. Até hoje as pessoas não sabem o que ocorreu. Vira-e-mexe, escuto alguém dizer que ela foi fazer um bebê de proveta. Clara foi fazer uma cirurgia de varizes.

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