Ações virais

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Por Daniel Piza
Atualização:

Nem sempre é a economia, estúpido. A julgar por seus opositores, Barack Obama tinha criado tantas expectativas que logo traria frustração equivalente. Cem dias depois do início de seu mandato, embora o PIB americano tenha caído 6% no primeiro trimestre, sua popularidade é bem alta. Em parte, obviamente, porque ele ainda conta com o vasto crédito que lhe foi dado. Mas em parte, igualmente, porque ele tem feito em pouco tempo uma coisa rara: tem cumprido suas promessas de campanha. Ninguém pode acusá-lo de passividade. Eu diria até que está acontecendo o contrário: se não fosse pela crise, muitas de suas medidas teriam recebido mais atenção. Ele recuperou, por exemplo, a pesquisa com células-tronco que o governo conservador de Bush II havia truncado; e ampliou o investimento em ciência para mais de 3% do PIB (no Brasil, mal chega a 1%). Na política externa, abandonou o tom unilateral do antecessor, sem deixar de ser duro contra as ameaças reais de Irã e Coreia do Norte. Marcou data para saída do Iraque e fechamento de Guantánamo e liberou fluxo de remessas entre Cuba e EUA. O futuro verá esses marcos. É claro que tem muitos problemas pela frente, como o sistema público de saúde e a crise econômica mundial. Mas, mesmo nesta, reagiu com rigor. Economistas como Paul Krugman queriam uma nacionalização dos bancos. De fato, os pacotes trataram a crise como se fosse de liquidez, uma mera questão de reanimar o consumo, e talvez por isso os políticos já comemorem com exagero os primeiros sinais de melhora ou estabilização. Ninguém, porém, pode garantir que estatizar era a melhor saída; palpites de especialistas continuam a ser palpites. A recessão é forte, mas já não tem pinta de Depressão. Obama, em outros termos, nunca foi nem será um intervencionista. O capitalismo está vivíssimo, para tristeza de pseudokeynesianos e socialistas. No Brasil, os autointitulados liberais acham que o Estado deve tender a zero e que o mercado não precisa de corretivos. Mas, como escreveu Amartya Sen outro dia no New York Review of Books, desde Adam Smith se sabe que o capitalismo precisa ser vigiado e regulado periodicamente: "Smith era não apenas um defensor do papel do Estado em prover serviços públicos, como a educação, e no alívio da pobreza; era também profundamente preocupado com a desigualdade que sobrevivia na economia de mercado." Daí o valor de normas, instituições e benefícios. Tal como no caso da "gripe suína", do vírus H1N1, o alarmismo, até por seu efeito manada, deveria ser evitado. Mas não se pode ser complacente com as medidas a tomar. Complacente, por enquanto, Obama não tem sido. Seu maior desafio é justamente manter o equilíbrio dinâmico entre serenidade e personalidade, entre coerência e abertura, entre liturgia e conexão. Por mais que a democracia americana emule rituais monárquicos na maneira como trata a Casa Branca, onde até a escolha do cachorrinho se transforma num jogo simbólico (confesso não ter a menor paciência para isso), Obama reconhece o reinado da realidade. Carisma não pode ser paliativo para a inércia. *** No Brasil, como se sabe, a rotina pública é mais rasteira e fuleira. Mas azar de quem não quiser ver o cálculo político na maneira como o governo Lula escondeu os problemas de saúde de Dilma Rousseff e os revelou no momento em que o início da superação se caracterizou, a tal ponto que no dia posterior fomos informados de que ela cumpriu uma jornada de 16 horas. O subtexto foi o seguinte: se a oposição falar do tema, está apelando; se o governo falar, tudo bem. E ela e Lula pediram orações, ministros vieram exaltar sua luta, etc. O marketing da Era Digital inventou o termo "ação viral" para falar de uma publicidade por e-mail, digamos, que induz sua propagação em dominó, como se fosse um boca a boca (ou clique a clique). Lula e sua equipe usam mal a internet, mas dominam tal estratégia sem saber. Cantei a candidatura de Dilma já em fevereiro de 2007, quando ela foi visitar as obras do Pan, trabalho que caberia antes aos ministros do Planejamento, dos Esportes e/ou das Cidades. Desde então ela foi sendo cada vez mais inoculada nos atos do governo, até que um dia se tornou candidata sem precisar de anúncio oficial. Sim, é difícil lhe dar simpatia, mesmo com todas as plásticas. De qualquer maneira, ela tem agora uma luta pessoal para atrair compaixões, seu virtual adversário tampouco tem carisma (José Serra) e, além disso, como Lula não se cansará de dizer em 2010, "nunca antes neste país tivemos uma mulher na presidência". Quanto à economia - que não é tudo, mas dá e tira votos, como se viu nas últimas pesquisas -, o ano que vem promete melhores números e uma série de obras do PAC para reinaugurar o "espetáculo do crescimento". Faz tempo que Lula pensa no terceiro mandato. EM QUE ACREDITO À coluna da semana passada é preciso acrescentar que Schopenhauer também não se considerava um pessimista. Ele dizia que as pessoas é que desejam que "Nosso Senhor tenha feito tudo da melhor maneira possível". Ou seja, estava combatendo o otimismo cristão de sua época. H.L. Mencken, por sua vez, atacou a ilusão do americano médio a respeito da excelência de sua espécie. Para ele, um cosmos "infectado de Beethovens" não teria problema nenhum, pois nesse caso a humanidade seria outra. O acerto deles foi a crítica ao senso comum; o erro, a suposição de que há indivíduos ou grupos intrínseca e integralmente superiores aos outros (daí o machismo de Schopenhauer e o germanismo de Mencken). Dostoievski percebeu essa questão em Crime e Castigo: "Como distinguir o homem extraordinário do ordinário?" É o mesmo motivo por que não entendo essas pessoas que gostam de cultura e detestam gente, que cultivam os grandes momentos das ideias e das artes como se fossem obras de super-homens. No modernismo, isso foi bem comum: a ideologia antidemocrática dos intelectuais da época, à direita ou à esquerda, era gritante (como estudou John Carey). Mas a arte, que reflete o homem, transcende sua política. Por isso é besteira dizer que a arte moderna acabou, já que sua estratégia de fragmentação subjetiva persiste. O pós-modernismo pode ser visto como um desdobramento maneirista dele. O que acabou foi o que T.J. Clark chamou de vanguardismo, o modernismo heroico, utopista. Só não precisavam ter tirado dele o vigor da inquietação mental. MINICONTO Distraído, começou a subir a escada rolante, quando se deu conta de que ela descia. Pensou em acelerar para chegar ao alto. Mas, embora real, essa seria apenas uma sensação; afinal, a chegada estava lá embaixo. Se subisse na mesma velocidade em que ela descia, seria como estar parado. E, se ficasse parado, na realidade retrocederia. Qualquer que fosse a decisão, o movimento, aparente ou real, era o que entretinha tanto o corpo como a mente. Distraído de novo, deixou-se voltar para o início. E foi para a escada que subia. VALORES VIRTUAIS A internet não é apenas uma cornucópia de informações e opiniões, mas também de boatos e desonestidades. Se leio sobre mim mesmo, não me encontro: um site diz que nasci em Bauru (meu pai nasceu), outro que tenho andar "trôpego" ou língua presa; um coitado diz que me viu não sei onde de mocassim (nunca vesti nem sequer um par), outro comenta tudo que escrevo sobre futebol me atribuindo posições que nunca tive; o verbete da Wikipédia só menciona críticas recebidas por meus livros, não os elogios, e algum desocupado criou perfil falso meu no Twitter. O problema da rede digital não é o "culto do amador", apontado sem originalidade no livro de Andrew Keen; é o circo da mentira. POR QUE NÃO ME UFANO É um prazer ler O Crime do Restaurante Chinês, de Boris Fausto (Companhia das Letras). O título parece de romance ou de jornalismo literário, mas o subtítulo é do historiador e ensaísta que todos conhecem, "Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30". O que ele faz é eminentemente uma narrativa, inspirada na micro-história de Carlo Ginzburg e outros autores (mas sem a erudição deles), que se passa entre o carnaval e a Copa de 38. O principal suspeito da chacina, Arias de Oliveira, era negro e pobre, mas Fausto conta que a imprensa e a população tiveram simpatia ao mesmo tempo que mostravam racismo, inclusive no júri de elite. A polícia, por sua vez, se dizia científica, técnica, mas arrancou confissão de Arias por métodos também suspeitos. Ainda assim, ele foi absolvido. Tudo isso no clima da afirmação nacionalista da mestiçagem proporcionada pelo talento do craque Leônidas, o "Diamante Negro". Lemos o livro e, embora tenhamos a sensação de que muito mais poderia ser detalhado e desdobrado, meditamos sobre a ambivalente integração étnica do período getulista, que moldou a cultura moderna brasileira. Não é fácil imaginar tema mais pertinente.

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