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A vulnerável condição humana

Livro de Martha C. Nussbaum analisa a ética nos autores trágicos e na filosofia

Por Daniel Piza
Atualização:

O ponto de virada tem a ver com a compaixão, não entendida como sentimentalismo acrítico, mas como reconhecimento humanista. "Apiedamo-nos de Filoctetes, abandonado sem amigos e com dor em uma ilha deserta", escreve Martha C. Nussbaum. "Apiedamo-nos de Édipo, porque a ação apropriada a que seu caráter o levou não era o crime terrível que, por ignorância, cometeu. Apiedamo-nos de Agamêmnon, porque as circunstâncias o forçaram a matar a própria filha, algo profundamente repulsivo a seus próprios compromissos éticos, bem como aos nossos. Apiedamo-nos de Hécuba, porque as circunstâncias a privaram de todas as relações humanas que conferiram sentido e valor à sua vida." E a autora conclui: "Pela observação de nossas respostas de piedade, podemos esperar aprender algo mais sobre a (...) vulnerabilidade de nossos próprios compromissos mais profundos." A vulnerabilidade da condição humana é o assunto central do livro de Martha, A Fragilidade da Bondade, publicado originalmente em 1986 e nunca traduzido no Brasil. Ela está interessada em entender quais as consequências éticas do fato de que, por mais virtuoso que seja o indivíduo, ele jamais está livre de sofrimentos e azares. A "bondade" do título não deve ser vista como generosidade ou gentileza, mas como uma disposição para praticar o bem, para não fazer mal aos outros e ajudá-los na medida do possível. Por mais escrúpulos que um ser humano tenha e exerça, ele é frágil diante da força das circunstâncias e contingências. Não é senhor absoluto de seu destino, como pregam heroísmos modernos ou livros de autoajuda. No entanto, mesmo em meio a uma guerra em que seja obrigado a matar, o homem tampouco é vítima simples do destino: sempre lhe restará um resíduo de escolha moral, de decisão autônoma. Tal estado ambivalente é discutido com enorme brilho pela autora a partir dos pensamentos de Platão e sobretudo Aristóteles, que dizia que a virtude se encontra no meio-termo, na moderação, na conciliação de contrários. Nussbaum analisa as peças trágicas como demonstrações desse modo de pensar, com o qual, em linhas gerais, está de acordo. O que tenta - e consegue - colocar são sutilezas no raciocínio, aproximando-o de uma escola mais pragmática, americana ("piedade significa ação"), que rejeita o pensamento idealista de um Kant porque ele propõe que a moral viva numa esfera intocada pelo acaso. O que a atrai no pensamento grego é a possibilidade de contestar os deuses, de fomentar uma sociedade pluralista, crítica, e não a cultura culpada cristã, em que os desejos são afastados como antiéticos ou contraproducentes. Filoctetes, porém, sabe das coisas, porque aprendeu com o sofrimento, como Édipo em Colona. "Engano, fato comum na longa vida humana", diz ele ao jovem Neoptólemo. Que ambos tenham conseguido um consenso, uma superação do engano mútuo para a obtenção de um trunfo, continua sendo menos comum. Políticos, sacerdotes, doenças e violências estão aí, no noticiário de todo dia, para nos lembrar de que a falta de escrúpulos e o poder das casualidades não podem ser controlados. E que a retórica da moderação muitas vezes não passa de artifício para esconder as verdades mais dolorosas. Os gregos não nos ensinam a viver pior ou melhor; eles nos ensinam que viver é essa eterna confusão entre estar sujeito e ser sujeito, a qual podemos diminuir com a reflexão. Para o bem ou para o mal, ainda falamos grego com nossos impulsos. Os Lançamentos A FRAGILIDADE DA BONDADE: Estudo de Martha C. Nussbaum, da Universidade de Chicago, sobre a ética nos trágicos e em Platão e Aristóteles. (Tradução de Ana Aguiar Cotrim, Martins Fontes, 486 págs., R$ 89) FILOCTETES: A peça de Sófocles ganha tradução de Trajano Vieira. A edição, bilíngue, traz ainda ensaio do crítico Edmund Wilson sobre o texto. (Editora 34, 216 págs., R$ 34) AGAMÊMNON: Professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, José Eduardo dos Santos Lohner assina a tradução do texto de Sêneca, também lançado em edição bilíngue. (Globo, 242 págs., R$ 29) A MORTE DE EMPÉDOCLES: Poema trágico em que o autor alemão Friedrich Hölderlin usa o mito do poeta grego para criticar a Alemanha materialista do século 19. (Tradução de Marise Curioni; Iluminuras, 336 págs., R$ 47)

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