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A violência contra os mortos

Livro explica as formas de morte e as práticas de sepultamento de escravos dentro da lógica da corte

Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:

Em janeiro de 1996, o casal Petruccio e Ana Maria Mercedes Guimarães deram início à reforma de sua nova casa, localizada na Rua Pedro Ernesto 36, na Gamboa; zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. Mal os pedreiros começaram a tarefa, notaram que em meio à terra revirada surgiam ossadas e alguns objetos espalhados em meio aos detritos. Para tornar breve uma longa história, depois do espanto inicial constatou-se que lá se localizava um antigo e pequeno jazigo coletivo, mais conhecido como "Cemitério dos Pretos Novos". Descoberto acidentalmente, o "campo santo" foi tombado e gerou esse pequeno mas importante livro, que acabou por reconstruir mais uma das várias facetas da história deste país, marcado de ponta a ponta pela escravidão. Não são poucos os livros que trazem os números de escravos vindos com o tráfico negreiro - mais conhecido na época como o "comércio de almas" -, ou que analisam os horrores do Valongo: o mercado de escravos que ficava aberto à visitação do público no Rio de Janeiro. Viajantes narraram com detalhes as práticas violentas, a sujeira e, sobretudo, a maneira inumana como os africanos eram tratados; tudo isso sem qualquer disfarce ou preocupação em escamotear o tipo de comércio lá realizado. Mas quase nada se disse sobre os mortos. O fato é que bem ao lado do Valongo foi criado um cemitério para dar conta dos escravos que não sobreviviam à travessia do Atlântico ou que morriam logo ao chegar ao Brasil. Assim, enquanto o mercado cuidava dos vivos, o cemitério se encarregava dos mortos, os quais nem nome chegavam a ganhar. Em 1814, G. W. Freyreeyss descrevia o cemitério da seguinte maneira: "No meio deste espaço de 50 braças havia um monte de terra da qual, aqui e acolá, saíam restos de cadáveres descobertos pela chuva que tinha carregado a terra e ainda havia muitos cadáveres no chão que não tinham sido ainda enterrados." Pretos novos eram, pois, aqueles que morriam no traslado, na chegada à Baía de Guanabara ou imediatamente após o desembarque e, de toda maneira, ainda não haviam sido vendidos. Os motivos de morte eram muitos e freqüentes - varíola (na época conhecida como bexiga), furúnculos, congestões, enfartes, sarna... - e, dessa maneira, a necessidade condicionou o costume. Assim, de 1772 a 1830 funcionou no Valongo - uma faixa do litoral carioca que ia da Prainha à Gamboa - um espaço destinado ao sepultamento de negros enterrados "à flor da terra". É esse inclusive o nome do livro de Júlio César Medeiros da Silva Pereira - À Flor da Terra: O Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro (Garamond, 204 págs., R$ 32,40) -, que não só se limita a analisar o "campo santo", como dá elementos para entender sua importância dentro da lógica escravista da corte, relaciona as formas mais freqüentes de mortes e explica os rituais que giravam em torno das práticas de sepultamento. Recobertos pela terra restaram os corpos e o próprio cemitério, mas é possível, a partir dessa obra, entender sua relevância no interior do sistema local. Como explicava o vice-rei, o marquês de Lavradio, já em 1769, "os negros novos, que vêm dos portos de Guiné e Costa da África" deveriam ser conduzidos para o sítio do Valongo "sem saltarem à terra". Seria lá que "se curariam os doentes e se enterrariam os mortos, sem poderem jamais sair daquele lugar para esta cidade, por mais justificados motivos que existam e nem ainda depois de mortos, para se enterrarem na cidade...". Os doentes eram, assim, separados dos contatos dos sãos e entre eles as epidemias e a mortalidade grassavam. Mas o cemitério era também parte necessária e inseparável desse mercado, uma vez que o modelo em curso pressupunha a violência e a própria morte. Além do mais, o mercado e o cemitério ficavam afastados da cidade, e assim deveriam permanecer, para que o espetáculo "não degradasse os olhos e o olfato". Dessa maneira, a desigualdade terrena se espelhava nas diferenças dos sepultamentos e os rituais simbólicos referendavam o que era, de fato, resultado da ação dos homens. No entanto, a cidade que já nascera apertada cresceria demais, e por volta de 1821 a população alcançava a marca de 333 mil habitantes, e só os escravos representavam metade deste número. Não é de se estranhar, portanto, que o que era longe se tornasse perto, e não à toa os moradores reclamariam da existência de um cemitério como esse bem nas redondezas. Assim, se a parte comercial do Valongo crescia, e em 1817 já existiam 34 estabelecimentos dedicados ao comércio de almas - sendo essa região uma das mais freqüentadas do Rio -, já o cemitério manteria seu aspecto malcuidado, sua parede fina a separá-lo do mundo dos vivos e seu tamanho acanhado: tinha apenas 50 braças, o que corresponderia à dimensão de um campo de futebol. Por isso, a população que foi se achegando ao local não tardou a protestar por conta do mau cheiro e a acusar o campo santo de ser "o principal produtor dos miasmas que grassavam na cidade". O suposto era que as matérias orgânicas em decomposição, especialmente de origem animal, sob influência de elementos atmosféricos - como o calor e a direção dos ventos -, formavam vapores danosos à saúde. Os gases emanados dos cadáveres foram considerados os verdadeiros causadores das doenças e os vizinhos do cemitério do Valongo logo pediriam não a supressão, mas sua transferência de local. Por outro lado, requerimentos dirigidos ao príncipe regente d. João exigiam que o cemitério fosse removido para "um lugar remoto". O fato é que os corpos ficavam praticamente sob uma fina camada de terra e a própria quantidade diária de sepultamentos não permitia que a prática se alterasse, com os cadáveres sendo jogados uns sobre os outros. Entre 1824 e 1830, por exemplo, foram sepultados 6.119 escravos no Cemitério dos Pretos Novos, o que dava uma média de 1.019 sepultamentos por ano, num lugar cujas dimensões permaneciam restritas. Mas a grande e única maneira de entender a persistência do cemitério é a partir do tráfico: quanto mais ele aumentava maior era o número de escravos enterrados. Afinal, a partir da chegada da corte em 1808, a compra de cativos crescera enormemente. Se em 1807 entraram menos de 10.000 escravos, em 1822 o número cresceu a quase 21.000, e em 1828 a 45 mil. Como decorrência, só nesse último ano foram dois mil os pretos novos enterrados no Valongo. E a violência não era apenas física, como também cultural. Nus ou envoltos e amarrados em esteiras finas, jogados em covas rasas que logo apareciam com as chuvas, os negros eram enterrados sem qualquer reza, sacramento ou ritual religioso. Afinal, muitos eram batizados já na África ou logo ao chegar ao Brasil, isso quando não guardavam seus próprios costumes de origem. Como mostra Júlio César, na cultura banto a morte é tema dos mais complexos, e o falecido, desde que tratado de acordo com os rituais, incorpora-se à comunhão dos antepassados e integra a cadeia que une vivos e mortos. Porém, sem o devido enterramento o morto converte-se num desgarrado, um ente sem lugar entre os vivos e os mortos. Tal prática e compreensão eram tão disseminadas que, na hora da morte, escravos ladinos - já acostumados com o cotidiano e as práticas locais - evitavam as valas comuns e cuidavam de se filiar a alguma irmandade, que lidaria com seu enterro. A morte relacionava-se à idéia de viagem, de transição e de mudança, e sem os processos fúnebres necessários o corpo defunto ficava condenado a "não viajar"; violência suprema e terror maior até mesmo para aqueles já tão acostumados à perversidade de sua condição. O Cemitério dos Pretos Novos foi finalmente fechado em 1830, por conta das reclamações dos moradores e do tratado de extinção do tráfico imposto pela Inglaterra em 1827, e que entraria em vigor três anos depois. Teoricamente, se não existia mais tráfico também não poderia haver pretos novos, ou um cemitério a eles destinado. Mas, se a história do tráfico foi diferente - e o mesmo só acabou em 1850 -, já o campo santo foi finalmente encerrado. O local sim, mas não a prática, uma vez que escravos continuaram a ser enterrados à flor da terra. Muito tem se comentado acerca da violência praticada contra os escravos vivos; pouco acerca dos mortos. Em tempos de comemoração da vinda de d. João, vale a pena olhar para outros lados que também caracterizaram essa época. Foi durante o período em que a corte esteve no Brasil que se incrementou o tráfico negreiro e com ele as práticas de morte. Morrer na viagem ou logo na chegada à colônia portuguesa era uma fatalidade esperada e previsível. Difícil mesmo, como mostra Júlio Cesar com cuidado e sensibilidade, era pensar em como se desfazer de corpos, que, em princípio, não davam mais lucro a ninguém. Em Memorial de Aires, Machado de Assis coloca na boca do Conselheiro uma bela reflexão sobre túmulos e cemitérios. "Não é feio o nosso jazigo (...). Creio que um velho túmulo dá melhor impressão ao ofício, se tem negruras do tempo que tudo consome. O contrário parece sempre de véspera." O que chocava no Cemitério dos Pretos Novos era o pouco cuidado com a morte e a exposição dos corpos. A escravidão era um espetáculo restrito. Já a morte de escravos deveria ser invisível; caso não fosse, precisava ser apagada do cenário dos vivos. Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia e autora, entre outros, de As Barbas do Imperador e A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis Glossário VALONGO: nome da localidade onde ficava um mercado de escravos, mantido entre 1772 e 1830 numa faixa litorânea que ia da Prainha à Gamboa, na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. Ao lado dele estava localizado o Cemitério dos Pretos Novos, pequena sepultura coletiva para onde eram levados os negros mortos. Valongo se tornou sinônimo do local utilizado para venda de mão-de-obra negra no Brasil escravagista.

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