A vida imita a arte (II)

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

Quando se faz um paralelo entre a morte, e a morte de uma pessoa concreta e, acima de tudo, conhecida, como ocorre na história de Quincas Berro d''Água, coloca-se em relação direta a questão da finitude que todos aceitam teoricamente; e um complicado e aflitivo final concreto. É fácil admitir a finitude (todos os seres vivos nascem, crescem, reproduzem-se e morrem); mas é muito complicado aceitar que um conhecido chegou ao fim. Ninguém tem nada contra a morte, desde que não seja a sua ou dos seus entes queridos. Na história de Quincas Berro d''Água, um narrador sem o controle total dos fatos vai, gradativamente, mostrando como um certo funcionário público de vida regrada e trivial, sujeito impiedosamente por muitas décadas de tirania conjugal, um tal de Joaquim Soares da Cunha, transformou-se no lendário Quincas Berro d''Água, pai de todas as prostitutas, maconheiros, malandros pequenos meliantes quando, um dia, assumiu a sua liberdade. Joaquim era um dominado pelas convenções, um tipo como o próprio Jorge Amado, controlado e fiel ao Partidão; mas Quincas Berro d''Água tornou-se alérgico à própria água e apropriou-se de seu destino com tal destemor, que - reza a história repleta de meandros e pontos controversos - foi capaz de programar o seu próprio enterro, tendo múltiplas mortes. Porque como sabem os que abraçam a literatura, impossível, como dizem que ele teria dito ao falecer, não há. De fato, ele morre pela primeira vez quando rompe com a casa; a segunda quando falece fisicamente no Pelourinho; a terceira quando a família lhe resgata o corpo e, com o atestado de óbito, legaliza oficialmente a sua morte como Joaquim Soares da Cunha; a quarta quando os amigos o visitam no velório e nele vêem um Quincas travestido de velho aposentado; a quinta quando - depois de ter sido devidamente ressuscitado pelo amor dos companheiros, e de ter tomado parte em muitas aventuras noturnas - desaparece no mar imenso e sem fronteiras da Bahia. E a sexta quando nós, leitores da sua vida, conseguimos, pela experiência estética conjugar esses dois espíritos que pertenciam a um só corpo, quando admiramos sua coragem de romper com as convenções, e de abraçar a utopia de um mundo sem rotinas, responsabilidades, deveres e trabalho. A oposição entre uma vida na casa (como Joaquim Soares da Cunha) e outra na rua, como o legendário Quincas Berro d''Água, conduz a reflexão amadiana sobre as mortes que todos, em vida e, quem sabe, fora (e depois) dela, temos por vontade ou imposição. Pois quem não morreu para a paixão, a carreira, o concurso, ou o papel que lhe foi negado, mal interpretado, jamais lido ou, simplesmente, surripiado? Quem não teve dois ou mais nomes e descobriu-se múltiplo e feito de coisa pura e impura; incenso e podridão; ou, pior que isso, de muito mais de simples dualidades? E quem não foi revelado como o exato oposto de si mesmo nos exames, nas discussões de bar, nos tribunais ou nos descuidos reveladores das meias furadas? Afinal, pergunta Jorge Amado por meio de Quincas e de Vasco Moscoso do Aragão, qual é a morte mais importante, se - de fato - morremos tanto e, no fundo, não vivemos apenas para morrer, mas de morrer? Seria a morte social que nos transforma o nome, fazendo-nos doutor, professor, deputado, Gisele, Pelé ou Lula; ou a morte física que nos leva para o confinamento absoluto? Mas quem é que foi levado somente para a cova e não teve uma segunda morte com a sua comunidade? Ademais, pergunta o nobre narrador amadiano com aquela singeleza que os seus críticos uspianos confundem com mediocridade, se tanto morremos, quantas vezes ressurgimos? E por meio de quem assim fazemos? John Barrymore foi um superator. Morto, aos 60 anos, em 24 de maio de 1942, de pneumonia e cirrose hepática por causa do abuso de álcool, ele foi um elo básico numa linhagem que hoje sobrevive numa neta, Drew Barrymore. Raoul Walsh (1887-1980) foi um diretor americano que fez tudo na história do cinema. Em 1915 foi ator no clássico de Griffth, O Nascimento de Uma Nação; ajudou a fundar o sindicato dos diretores e dirigiu, entre muitos, o fabuloso O Ladrão de Bagdá, e o clássico da guerra como piquenique, Um Punhado e Bravos, estrelado por Errol Flynn, em 1945. No dia em que Barrymore morreu, Flynn expressou seu sentimento de perda do amigo de copo. Walsh entrou em contato com um dos donos da funerária Malloy Brothers, de Los Angeles, e pediu emprestado o corpo do ator. Sua intenção era fazer uma surpresa ao bebedor e pegador de fama mundial que, em carnavais no Rio de Janeiro, comeu as mulheres de quase todos os seus grã-finíssimos anfitriões. Walsh levou o cadáver para a casa de Flynn, que ficou surpreso ao ver John Barrymore sentado numa cadeira, bebendo uísque e soda com Raoul Walsh. Passado o susto, o corpo foi devolvido à funerária e o seu dono e amigo, Malloy, ficou chateado porque, se ele soubesse que o diretor estava levando o cadáver para uma roda de bebida elegante com um ator tão famoso, ele teria vestido melhor o morto. Digam-me vocês que são sábios e não moram em Niterói: a vida imita a arte ou vice-versa ao contrário? E quem é o mais poderoso? O morto que o amor dos amigos e o poder da narrativa levanta do túmulo; ou a morte que um dia nos irá conduzir à terra do esquecimento?

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