''''A verdade literária é o que importa em qualquer obra''''

Lloyd Jones não se preocupa, por conta disso, em contar histórias a partir da narradora, uma menina de 13 anos

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Por Ubiratan Brasil
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Ao contrário do título do livro de Charles Dickens, o neozelandês Lloyd Jones garante não ter grandes expectativas em ser anunciado vencedor do Man Booker Prize, o mais prestigioso prêmio literário em língua inglesa. ''''Creio que o sucesso do livro em diversos países já representa o que ele poderá me render'''', disse Jones, jornalista de 52 anos que, com O Sr. Pip, já venceu o Commonwealth, outra importante premiação. Sobre o livro, ele conversou, por telefone, com o Estado. Algum motivo especial justifica a escolha da ilha de Bougainville como cenário do romance? Na verdade, não. A primeira imagem que meio à mente era a do homem branco puxando uma carroça em que uma mulher negra está sentada - é o que faz Mr. Watts. Em seguida, pensei que a cena deveria ser descrita por alguém, daí me veio a voz de Matilda. Aos poucos, consegui reconhecer o lugar: era a ilha de Bougainville, um lugar que visitei inúmeras vezes a trabalho. Por falar nisso, foi difícil escrever a partir da voz de uma menina de 13 anos? Eu não diria que é uma narrativa autêntica, pois não tenho mais essa idade. O ideal seria alguém de 13 anos cuidar disso. O que me interessa realmente é a verdade literária. Talvez as pessoas se encantem com a narrativa de Matilda porque soa verdadeiro. Não podemos nos esquecer que a grande arma de um escritor é a boa utilização dessa voz literária. Por que a escolha de Grandes Esperanças, de Charles Dickens? É um livro que te deixou profundas impressões. Sim, exatamente isso. Foi a primeira história de Dickens que eu li, aliás, em uma condição nada agradável - eu era moleque, estava doente e não fui à escola. Lembro-me que, do meu quarto, ouvi alguém bater na porta e conversar com minha mãe. Era um vendedor de livros e ela comprou Grandes Esperanças para me distrair. Em pouco tempo, eu estava completamente hipnotizado pela história. Com o passar dos anos, voltei ao livro inúmeras vezes, sempre descobrindo novos aspectos. Daí o fascínio que ele também provoca em Matilda e nos demais habitantes da ilha. O que realmente é hipnotizante em Grandes Esperanças? Talvez uma certa nostalgia ou aquele sentimento de mistério que tão bem marca as obras vitorianas daquela época. Além de Dickens, quais outros autores que tiveram forte influência em sua formação? Muitos. Procuro sempre moldar minha lista com nomes distantes. Os russos, claro, como Dostoievski, Chekhov, Tolstoi, pertencem ao rol. Vários americanos, europeus e também latinos, como Jorge Luis Borges e Mario Vargas Llosa que, aliás, conheci aqui em Berlim. E como foi? Bem, ele veio lançar Travessuras da Menina Má em alemão e, como estou fazendo um curso para escritores, tive a chance de me aproximar. O problema é que ele só falava em espanhol e estava acompanhado de um tradutor que preferia conversar em alemão. Assim, fiquei envergonhado e acabei tirando apenas uma foto ao lado dele. Curiosa essa sua relação com celebridades, uma vez que você, como finalista do Booker Prize, também se transformando em uma. Na verdade, ainda não me acostumei com tal assédio. Venho de um país, a Nova Zelândia, que ainda não figura no mapa literário mundial, embora tenhamos uma escrita atuante e, muitas vezes, impactante. Assim, não posso alimentar muitas esperanças em relação ao Booker Prize. Por que, então, seu país não é o ambiente de seu livro? Ora, não sinto necessidade de sempre escrever histórias que se passam na Nova Zelândia. Não acredito que isso possa interferir na qualidade da obra, seja para o bem ou para o mal. Na verdade, ''''inspiração'''' (gosto de tratar essa palavra sempre entre aspas) me vem a partir do desejo de surpreender a mim mesmo a cada página. Trecho Não era simplesmente por ser o último homem branco que Olho Arregalado significava aquilo para nós - uma fonte de mistério, principalmente, mas também a confirmação de outra coisa que considerávamos verdadeira. Tínhamos crescido acreditando que branco era a cor de todas as coisas importantes como sorvete, aspirina, fita de cabelo, a lua, as estrelas. Estrelas brancas e lua cheia eram mais importantes quando meu avô era pequeno do que agora que temos geradores. Quando nossos antepassados viram os primeiros brancos, eles acharam que estavam vendo fantasmas ou talvez pessoas que tivessem caído em desgraça. Cachorros sentaram sobre os rabos e abriram a boca para aguardar o espetáculo. Eles achavam que ia ser uma festa. Talvez aquelas pessoas brancas soubessem dar cambalhota para trás ou saltar por cima das árvores.

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