A utopia nacional passa por uma democracia sem barreiras étnicas

Antropólogo Antonio Risério critica classificação racial vinda dos EUA, contrária à mestiçagem do País

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Por Francisco Quinteiro Pires
Atualização:

O que causa mais prurido no leitor - o batuqueiro fez um bozó na macumba ou o percussionista fez uma oferenda propiciatória em um culto afro-brasileiro? O antropólogo e poeta baiano Antonio Risério, que está lançando A Utopia Brasileira e Os Movimentos Negros (Editora 34, 440 págs., R$ 54), mostra com este e outros exemplos como a colonização mental e o discurso politicamente correto atingem o que ele chama de "arautos neonegros do nosso racialismo político-acadêmico". Nas universidades e nos poderes públicos, desde os anos 1970 os movimentos negros nacionais importam o conceito racional binário dos EUA. Essa perspectiva faz crer que no Brasil não haveria mestiços, somente negros e brancos. Não se pode ignorar o fato óbvio de que a mestiçagem impera no País, alerta Risério. Dono de estilo a um só tempo incisivo e caudaloso, Risério escreve 16 ensaios contra a confusão atual entre ideologia e genética. E a favor do projeto utópico de uma democracia social sem barreiras étnicas, como se lê no depoimento a seguir. O NEGRO BRASILEIRO Os negromestiços, hoje, se distribuem, variavelmente, por todas as classes sociais no Brasil. Estão no poder político, fazem parte do empresariado, ocupam ministérios. Houve, ainda, uma ampliação nada insignificante da classe média negra no País e de sua participação no mercado consumidor. A Associação Nacional de Empresários Afro-Brasileiros estimava, anos atrás, que mais de 10 milhões de negromestiços se encontravam nesse segmento social. É para eles que é feita, entre outras coisas, uma revista como Raça. E toda uma série de produtos cosméticos e vestuais. Os assim chamados "afrodescendentes" (que são todos, também, "eurodescendentes") constituem um considerável nicho de mercado, que atrai investimentos de empresas multinacionais. Note-se que esses mais de 10 milhões de negromestiços não são cantores de rádio nem jogadores de futebol. Sociologicamente, o País mudou. São muitos os caminhos da ascensão social. Mas, em sua maioria, os negromestiços são pobres. OS INTELECTUAIS E A POLÍCIA Ao mesmo tempo, chega-se sempre, num certo momento, a uma dificuldade em classificar quem é e quem não é negromestiço no Brasil, às vezes, numa mesma família. Como classificar Lula, Joãozinho Trinta, Caetano Veloso, a cantora Marina e Juliana Paes? Afora isso, o que fazer com a população cabocla da Amazônia? Aqueles caboclos amazônicos não são negros nem brancos. E estão sendo discriminados por conta disso. Os militantes dos movimentos negros costumam dizer, na sua ânsia de dividir o País em brancos e pretos, segundo o modelo racial norte-americano: os intelectuais não sabem quem é negro, mas a polícia sabe. Uma polícia racista, corrupta e criminosa não pode servir de critério para nossas visões e idéias sobre o Brasil e o povo brasileiro. RACISMO DE ESTADO O Congresso Nacional está prestes a votar o Estatuto da Igualdade Racial, que é racialista e racista. Vai instaurar o racismo de Estado, aqui. Quer promover fechamentos neo-étnicos, compartimentalizando o País. Impondo identidades aos cidadãos brasileiros. E o que é pior: podendo comprometer futuros avanços sociais do País. O que me preocupa é que a Câmara dos Deputados não parece preparada para discutir a questão. Ninguém, no Congresso Nacional, se mostra disposto a uma discussão séria com os ideólogos do racialismo neonegro. Por demagogia ou covardia política. FUTURO DE IGUALDADE O conjunto da sociedade brasileira não aceita o racialismo, mas há uma perversão partidocrata aí - e uma reverência injustificável diante dos discursos das "minorias", que, na verdade, são minorias dentro de minorias. Talvez seja querer demais, mas, sinceramente, espero que os membros do Congresso Nacional encarem o assunto com responsabilidade e sensatez. Nós temos de caminhar para um futuro de igualdade, não para um futuro de diferenças. Não temos razão para repetir erros absurdos que outros países cometeram e de que hoje se arrependem. PAÍS SINCRÉTICO O multiculturalismo é um discurso ideológico que prega que cada comunidade ou "etnia" pode e deve ter um desenvolvimento próprio, autônomo, sem se deixar imiscuir no movimento real do mundo. É uma espécie de autismo antropológico, um apartheid de esquerda, porque o exemplo maior de separação étnica ou racial foi dado pela África do Sul, antes de Nelson Mandela. O sincretismo, ao contrário, é um festival de misturas, pessoais e grupais. Misturas genéticas e simbólicas. O Brasil conta com meio milênio de experiências nesse campo. Hoje, a Europa, cheia de imigrantes, não sabe o que fazer com eles. Nós sabemos - e muitos estudiosos europeus, como Jacques Attali, Marc Ferro e Massimo Canevacci, para dar alguns exemplos, sabem disso. Nenhum japonês, árabe, judeu, etc., fica por aqui impunemente, por mais de uma geração. São todos sobretudo brasileiros, sem se sentirem obrigados a renunciar a práticas ancestrais de cultura. Nós, ao contrário dos EUA, temos um precioso know-how de relacionamentos interétnicos e interpessoais. E isso é o que interessa. FLORESTAN FERNANDES Tínhamos leituras antropológicas do Brasil. Florestan entrou em cena centrado na sociologia. É a sua virtude e o seu pecado. Diante de uma fábrica de defumadores, um sociólogo se pergunta sobre o número de pessoas empregadas, sua composição racial, seus salários. Mas não se pergunta sobre o uso dos tais defumadores nesse ou naquele sistema simbólico. Afinal, para que produzimos defumadores? Não é para empregar gente, é para incensar terreiros, para exorcizar espíritos. Florestan responde a uma dimensão da questão, não a todas. Ele, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque são grandes mestres e nos ensinam coisas diferentes sobre o Brasil. Temos de aprender com os três, que não são opostos, mas complementares. JOAQUIM NABUCO Nabuco aponta, de uma parte, para o passado. É quando idealiza o reinado de Pedro II como a "Grande Era Brasileira". De outra parte, ele se acha inteiramente voltado para o futuro. Ainda hoje, não realizamos o que ele considerava essencial para o Brasil, no fim do século 19. Não fizemos a reforma agrária nem a revolução educacional que os abolicionistas propunham. São as revoluções que nos faltam: o Brasil precisa dividir mais justamente a sua vasta extensão territorial e socializar mais amplamente o conhecimento. Estamos atrasadíssimos a esse respeito, por mais que falemos de "inclusão social". E enquanto essas coisas não forem feitas, Nabuco vai continuar aí, apontando para o futuro. ANTROPOFAGIA E RAÇA O antropofagismo oswaldiano, regra geral, é muito mal compreendido. Fornece álibis para as mais diversas ignorâncias. Mas, se você olhar bem, o antropófago do Oswald de Andrade nunca teve estômago de avestruz. Ele se colocava sob o signo da devoração crítica. Não era pela importação de qualquer coisa e muito menos de modelos prontos. Mas pela "deglutição" das informações internacionais relevantes e de ponta, que deveriam ser relidas e recriadas em nosso contexto, com o objetivo último de produzir informações originais, invertendo o influxo cultural dos países centrais para os periféricos. Isso não tem nada a ver com o que se faz atualmente em meio ao nosso racialismo neonegro, que voltou as costas às realidades brasileiras e adotou, sem o menor senso crítico, o discurso de uma certa faixa da militância política e do mundo universitário norte-americano, como se a história de um povo pudesse ser substituída pela história de outro. E justamente num campo, o das relações raciais, em que a experiência norte-americana nada tem de exemplar. GENÉTICA E IDEOLOGIA Nós somos mestiços. Este é um dado objetivo, biológico. Além disso, a existência de seres mestiços é socialmente reconhecida em nosso ambiente, ao contrário do que vemos nos EUA, onde o próprio censo demográfico do país não permite que um mulato se defina como tal: ele é obrigado a ser negro, com o queriam os senhores escravistas das plantações dos Estados sulinos. Mas, além do fenômeno genético e do fato de termos aprendido a nos ver, histórica e culturalmente, como mestiços, existem as ideologias da mestiçagem. Os pregadores do racialismo neonegro parecem não conseguir entender que uma coisa é o fenômeno objetivo da mestiçagem e outra coisa, bem diferente, são as ideologias do ser mestiço. Uma coisa é a troca biológica de genes, outra coisa é o que você pode pensar sobre isso. Acontece que as ideologias da mestiçagem no Brasil foram produzidas, desde o século 19, a partir de uma perspectiva senhorial. Reagindo contra isso, os movimentos negros escolheram o caminho mais fácil e, ao mesmo tempo, mais falso. Copiaram o padrão binário em vigor nos EUA, que é o único país do planeta que não reconhece a existência de mestiços de branco e preto - e baixaram um decreto ideológico racista, afirmando que não existem morenos, mulatos, jambos ou sararás no Brasil. HARMONIA SOCIAL Só existiriam negros e brancos, o que é historicamente insustentável e sociologicamente absurdo. Não só porque há milhões de morenos e mulatos no Brasil, de Luíza Brunet a Camila Pitanga, como temos filhos de negros e índios, a exemplo de Garrincha, que descendia dos índios fulniôs do Nordeste, e caboclos que descendem de brancos e índios, sem interferências negras mais visíveis, como se pode ver tanto no vale do Rio de São Francisco, quanto em toda a região amazônica, para não falar do caleidoscópio de cruzamentos em São Paulo. Então, para combater esta ou aquela ideologia senhorial da mestiçagem, é uma ilusão simplesmente fechar os olhos para as trocas genéticas e decretar, em panfletos e manifestos, que não temos mais mestiços entre nós. Temos, sim - e é a maioria da população brasileira. Fazer de conta que não somos mestiços é se condenar a não entender o País. E tem uma outra coisa, fundamental: mestiçagem nunca foi sinônimo de harmonia social. Pelo contrário, tem implicado disputas, conflitos, confrontos. Como aqui, no Brasil. Alguém, nascendo brasileiro, vai querer se enganar sobre isso? COTAS RACIAIS As grandes divisões sociais brasileiras não dizem respeito somente à cor da pele. Entre numa grande favela paulista, nos bairros mais pobres de Natal, etc., e é o que se vai ver. A luta por cotas raciais para pretos é um equívoco, ao racializar inadequadamente a esfera pública em que nos movemos e ao criar privilégios, num país onde nem todos os pretos são pobres e nem todos os pobres são pretos. Por que uma filha do atual ministro da Cultura, que é um mulato escuro e um sujeito rico, tem direito a esse privilégio - e o filho de um motorista do Ministério, por ter a pele mais clara do que a filha do ministro, não? O conjunto da sociedade brasileira não embarca nessa canoa furada. Mas ainda não articulou as suas vozes. Sarney, Fernando Henrique e Lula, muito mal assessorados, baixaram decretos ou adotaram posturas racialistas. Só uma luta ideológica ampla e profunda poderá reverter esse quadro. Quer encarar mesmo a questão social brasileira? Vamos então ampliar a igualdade de oportunidades, educar, propor políticas próprias para o mercado, novos modelos de trabalho e propriedade, abolir o instituto da herança. Chega de profissionais da negritude. Sejamos sensatos, sejamos sérios. UTOPIA BRASILEIRA A utopia brasileira é o grande sonho social com que este país sonhou. E este grande sonho social é o de uma democracia. Uma democracia não somente política, mas social. E uma democracia social que transcenda e ultrapasse o que ainda não fomos capazes de transcender e ultrapassar: as barreiras étnicas. Mas, como temos apostado nessa direção, ninguém vai me convencer de que não temos tudo para fazer com que o mito se encarne na história. Perfil ANTONIO RISÉRIO: Nascido em Salvador, em 1953, o poeta e antropólogo fez política estudantil nos anos 1960 e mergulhou na contracultura. Ajudou na implantação da Fundação Gregório de Matos, na Bahia, e elaborou o projeto geral de criação do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Participou das duas campanhas vitoriosas de Lula à Presidência. É autor de Caymmi: Uma Utopia de Lugar e Avant-Garde na Bahia, entre outros.

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