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A Terra é redonda, por enquanto

Por Lúcia Guimarães e NOVA YORK
Atualização:

Barack Obama propõe a eutanásia de idosos para economizar gastos com saúde. A equipe econômica do governo americano abriga socialistas convictos. Barack Obama nasceu no Quênia. Os ricos são eleitos por Deus. A Terra é redonda. Na múltipla escolha acima, além de apenas uma afirmação verdadeira, o leitor pode encontrar um elo comum entre as outras quatro. São enunciadas por políticos eleitos, cujo partido foi rejeitado nas urnas em novembro passado. O nível de desinformação disparou neste verão americano, graças à alta pressão do debate sobre o seguro saúde. Com mais de US$ 2 trilhões (sim, "tri") em jogo, corporações pegam pesado no país que gasta o dobro do que outras nações desenvolvidas em saúde e tem 50 milhões fora do sistema. Nos Estados Unidos, ignorar lunáticos e apostar no bom senso pode ser uma estratégia duvidosa. O senador democrata John Kerry, derrotado por George Bush na eleição de 2004, ignorou, com seu enfado patrício, a bem financiada organização extremista de direita que o representou em filmes na TV como um traidor e não como o militar condecorado que demonstrou bravura no Vietnã e voltou para denunciar a guerra. O mesmo país que concentra o maior número de cérebros da ciência em atividade, abriga, em sua capital, uma seita fundamentalista - A Família -, um grupo de lobistas travestido de organização religiosa e, portanto, isenta de impostos. O grupo reúne deputados e senadores, alguns envolvidos em escândalos financeiros e sexuais recentes. Ao sair do apartamento de uma entrevistada, acadêmica e historiadora, ela suspirou quando mencionei A Família, com o ar compungido de quem sente embaraço em nome do país inteiro. "Somos meio complicados, não?", disse a anfitriã, ao se despedir. Uma das complicações a que ela se referia é a reverência nacional à simplificação. O debate da saúde envolve um labirinto de ideias e nós vivemos sob a brevidade dos 140 caracteres do Twitter. O interesse escuso, que decide convencer os idosos vulneráveis de que eles estão atrapalhando a assistência médica aos mais jovens e deviam optar por uma partida mais rápida, encontra audiência. Como nos lembrou Mark Twain, uma mentira viaja meio mundo enquanto a verdade ainda calça os sapatos. Enquanto a cidadania americana inconteste de Barack Obama bocejava, sua falsa cidadania queniana já tinha ido a Nairóbi forjar uma certidão de nascimento local. A constituição americana determina que um presidente deve ter nascido no país. O movimento dos Birthers difunde a teoria conspiratória de que Obama não veio ao mundo no Havaí, declarado o 50º Estado americano em 1959, dois anos antes do seu nascimento. Entra em cena a mídia venal. O âncora xenófobo Lou Dobbs comanda um programa diário na CNN. Ele decidiu dar credibilidade aos Birthers. A mesma rede fundada por Ted Turner abriu seu horário nobre para um policial de Boston suspenso pela carta que escreveu sobre a prisão de Henry Louis Gates, o acadêmico de Harvard algemado por um policial branco ao tentar forçar a entrada da casa onde mora. O policial Justin Barrett achou por bem enviar um e-mail coletivo dizendo que, se tivesse enfrentado a situação do colega, teria sapecado um aerosol paralisante na cara de Gates, descrito por ele como "um macaco comedor de banana na floresta". Menos do que o ufanismo racista da missiva, a ideia de que um idiota de seu calibre tem porte de arma me faria pedir proteção à máfia irlandesa de Boston. Pois a CNN trouxe o policial, com advogado a tiracolo, para justificar sua decisão de mover um processo multimilionário contra o governo da Boston, como vítima de retaliação profissional. Quando a mídia abdica do seu papel de distinguir entre diversidade democrática e ignorância militante, acabamos com o elenco inesgotável de mentecaptos, que, como diz o jornalista Charles Pierce, acredita que uma tolice se torna fato se for espalhada aos berros. No primeiro ano da mudança que os eleitores aprovaram nas urnas, duas palavras, "camisas marrons", que evocam a Alemanha nazista, voltaram a circular associadas a agitadores bem financiados por interesses corporativos e religiosos. É um exagero retórico, sim, mas não deve ser recebido na complacência. Em seu novo livro, Idiot America, Charles Pierce afirma que os Estados Unidos são o melhor país para se difundir absurdos e essa é uma qualidade adorável da democracia. Ele argumenta com as palavras do ex-presidente James Madison, o principal redator da Constituição americana. Em 1830, Madison escreveu: "Um governo como o nosso tem tantas válvulas de escape que traz consigo um alívio para as enfermidades das quais não estão isentas as melhores instituições humanas." A versão Twitter: O direito de mentir para o público fortalece a verdade. Com a velocidade da desinformação na era digital, o que Madison chamou de válvula de escape é um conceito em evolução. A cacofonia da truculência obscurantista tem abafado, com algum sucesso, as vozes do país fundado sob o impacto do Iluminismo.

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