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A terna compaixão com seres banais

Em Claro Que Você Sabe Do Que Estou Falando, a americana Miranda July criou histórias em que tudo parece estar por um fio

Por Wilson Bueno
Atualização:

Bem raro uma estréia acontecer com tamanho impacto, sobretudo no enfarado universo literário norte-americano, quanto a de Miranda July, de 34 anos, ao lançar, em 2006, a surpreendente reunião de contos Claro Que Você Sabe Do Que Estou Falando (No One Belongs Here More Than You), que acaba de chegar ao Brasil, na inventiva tradução, desde o título, de Celina Portocarrero. Desconte-se, claro, o fato de que July nunca foi nenhuma estranha ao mundo artístico da América, ou de fora dela. Artista performática, de reconhecido talento, venceu, com suas não pequenas inquietação e criatividade, o circuito de exigentes bienais, galerias e museus. Isso sem falar que, como roteirista, diretora e atriz principal do filme Eu, Você e Todos Nós, levou, em 2005, o Câmara de Ouro do Festival de Cannes e o prêmio especial do júri do badalado Sundance Film Festival. Mas a crer na aposta que parece fazer consigo mesma nesta sua primeira incursão ao espinhoso terreno das letras, Miranda July já é uma das mais promissoras escritoras de língua inglesa da atualidade. Nenhum exagero, leitor, mesmo porque de bem-intencionadas vocações o inferno está cheio. A literatura, contudo, é uma arte, sabemos, exigentíssima, em absoluto imune a mistificações. Decididamente não é o caso da jovem americana, nascida e criada em Berkeley, mas que há muito tempo optou por viver em Los Angeles, metrópole irradiadora do melhor da arte americana de nosso tempo. Mais que Nova York, L.A. concentra hoje, em múltiplas esferas, o inventivo frenesi do Império. Os exemplos são inúmeros e dispensam citações. Uma das provas constitui a própria Miranda July e este fascinante É Claro Que Você Sabe do Que Estou Falando. Dezesseis contos, 16 momentos-limite da arte narrativa. Tudo aqui, da primeira à última peça do jogo, conspira. O que se lê nem sempre é o que se dá no primeiro plano da escritura. Mais fundo e mais abissal, arrepiante maravilha, é o que subjaz por detrás do texto. No conto que abre o volume, O Quintal Compartilhado, July mostra, logo de cara, a que veio: o seu é o nosso mundo, este mesmo em que estamos mergulhados até o pescoço, testemunhas oculares do apavorante século 21, sem saudades do passado recente, talvez ainda mais corrosivo. Inútil olhar para os 900. Foram eles que gestaram Bin Ladens e HIVs, hackers, gangues, tsunamis e guerras químicas. No quintal comum a dois apartamentos de uma cidade qualquer, a primeira dessas protagonistas sem nome - e todo o livro será construído, peça a peça, por narradores sem nome, pulverizados pela anonimidade estupefaciente que é a marca de nossa época - se apaixona pelo vizinho Vicent Chang. Este tem uma falsa loira como esposa, alta e grandalhona. A narradora-protagonista informa medir metade do tamanho dela. Supervisora gráfica, trabalha numa dessas editoras americanas que produzem, em série, revistas destinadas a públicos segmentados. O texto ganha um efeito imediatamente cômico à medida que Miranda July vai intercalando nele, sem perder a progressão narrativa da história propriamente dita, trechos "edificantes", extraídos das páginas da revista Positive. Esta, como o nome tragicomicamente indica, tem, por público-alvo, soropositivos para HIV. A força do famigerado "pensamento positivo", uma das mais bregas - e hilárias - "criações" norte-americanas, perpassa o conto feito uma praga. Pois a mulher baixinha, do andar de cima (metade, ou ainda menos que isso, do tamanho de Helena, a mulher de Chang), acaba por conquistar dele o coração. Carente e precisada, ao rés do chão, se apaixona perdidamente pelo vizinho, mesmo ao assistir-lhe a um pavoroso ataque epilético. Ou se apaixona por isso mesmo já que, nessa história, como na vida, o amor é só um intercâmbio de falhas e emergências afetivas. Em Alguma Coisa Que Não Precisa de Coisa Alguma, temos o comovente caso de amor da narradora pela amiga de infância Pip. Ambas acabam abandonando as respectivas famílias e se mudam para Portland, onde vão viver um caso pontuado por encantamento e ciúmes, intrigas e aconchegos, numa sucessão de tapas e beijos que é a tão comum quanto monstruosa face das relações conjugais, seja de que gênero for, nesses nossos dias de desassossego. Aqui Miranda July nos dá a chave de todo o livro: depois de perder a namorada para a "intrusa" Kate, a narradora arranja emprego como dançarina de um Peep Show. De menina interiorana ainda que audaciosa, passa a trabalhar numa porno-vitrine, a atrair toda sorte de onanistas da região. Ao conseguir de volta a namorada Pip, a personagem acredita supersticiosamente que só foi aceita de novo porque não sai nunca da pele de outra personagem, Gwen, a dançarina; e detalhe suntuoso - jamais retira a peruca... Insiste, solenemente, que Pip só gosta dela porque não é mais a amiga de infância, que migrou com ela para Portland, mas a luxuriosa streaper da Mr. Peeps. É tudo mentira; é tudo figura... Do mais que insólito Os Movimentos, em que o pai ensina à filha a arte de usar os dedos com uma mulher, feito a herança de um homem pobre que não tem nada de material para deixar, ao Sinal de Nascença onde literalmente não sabemos mais onde começa a "realidade" e termina a "fantasia", passando pelo acachapante Fazendo Amor em 2003, até o melancólico Como Contar Histórias para Crianças, cruenta história de uma traição, Miranda July nos devolve o mundo em que vivemos sob letárgica inconsciência, como a uma bofetada. Não, senhores, nem um momento da pretensa arte com que enganadores de várias espécies tentam vender, como literatura, dissimulados livros de auto-ajuda, a usar, sem ética, mães com Alzheimer ou filhos excepcionais. Tudo o que vige aqui, neste É Claro Que Você Sabe..., é imantado de alta dignidade em que a nota maior é da terna compaixão por esses banalíssimos seres que povoam o nosso insensato mundo e pedem por nós um olhar que seja às suas expostas fraturas. A costurar, sutilmente, conto a conto, por mais diversos os entrechos - de A Irmã ao antológico Mon Plaisir; de O garoto de Lam Kien ao Beijo Uma Porta até Dez Coisas Verdadeiras, para ficar nesses exemplos, July confere a todos um denominador comum: a magia da "representação" na "representação" que torna qualquer universo ficcional encantado. Se o garoto de Lam Kien "inventa" o seu mundo e a protagonista faz questão de narrá-lo como verdadeiro ("representar" é o vetor da arte, de toda arte), também a obsessiva namorada de Pit se agarra a uma peruca acreditando ser essa "representação" (ou esta armadilha?) que fez a amante retornar aos seus braços. Tudo está por um fio, sempre tudo está por um fio. Só a superstição nos salva, os TOCs sucessivos, pois neste mundo fomos mesmo abandonados por Deus. Miranda July, ainda que com apenas 34 anos, já percebeu isso e nos dá a nota sinistra, de nossa contemporaneidade ainda mais sinistra, onde salvar-nos de nós mesmos talvez seja a única tarefa que se impõe; e a mais urgente. Wilson Bueno, escritor, é autor, entre outros livros, de A Copista de Kafka

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