A teoria do ralo

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Por Verissimo
Atualização:

Seu nome é Jean-Paul Quelquechose e ele é o maître de um hipotético restaurante na Cote D?Azur - chamado, aliás, "L?Hipotetique". Um velho observador do mar e das fortunas humanas, ele achava que as duas coisas se pareciam. Os ricos também vinham em ondas como o mar, e mesmo que quebrassem na costa como as ondas, atrás viriam outros, e outros e mais outros. Cada onda era diferente mas o mar era sempre o mesmo, assim como cada geração de ricos era diferente mas a riqueza que as impelia para a praia, e para o seu restaurante, era constante e confiável. Podia subir ou descer - como a maré - mas não falhava. Jean-Paul já passara por períodos de preamar e baixa-mar das fortunas, já vira um nobre arruinado se matar na sua frente, derrubando um faisão flambado na queda, e uma jovem herdeira chorar dentro da "bisque" com a perspectiva da miséria, e uma vez fora obrigado a botar três magnatas falidos e suas mulheres a limpar peixe na cozinha para pagar a conta de um jantar. Mas atrás de cada rico em desgraça vinha um mais rico, onda após onda. Agora não. Que Jean-Paul se lembre, a coisa nunca esteve como agora. As ondas não estão vindo, as ondas só estão indo. É como se o mar se retraísse. Como se o mar que ele via através dos janelões do seu restaurante se esvaziasse. Como se um ralo tivesse sido aberto no fundo do mar. Foi o que Jean-Paul disse para seu entrevistador, que comentara o pouco movimento do restaurante em plena temporada de inverno. A teoria do ralo. - Só pode ser isso. Para onde foi todo o dinheiro? Só pode ter desaparecido por um ralo. - Os ricos não estão mais vindo? - Os ricos não são mais ricos. - Não tem vindo ninguém? - Personne. - Nem os americanos? - Muito menos os americanos. - Nem os árabes? - Poucos árabes. Mas dividem os pratos e não dão mais gorjetas. - Ninguém mais tem dinheiro... - É um ralo. Só pode ser um ralo. - Esta crise, então, não é como as outras, Jean-Paul? - Não é. Passei por todas as outras e sei. Esta é diferente. Esta vai ficar na História. Se houver História depois dela... - Pelo menos você ainda tem essa vista bonita do mar da Côte, e agora com bastante tempo para contemplá-la. - Não me fale. Quando olho o mar só consigo pensar no que ele tem de sobra e ninguém mais tem. - O quê? - Liquidez. - Bom, já vou indo. Obrigado pela... - Epa, você não está esquecendo uma coisa? - O quê? - Minha gorjeta. - Mas nós só conversamos, você não me serviu nada. - E a filosofia?

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