A tensão presente no arco de Regina

Expoente do jazz tocando instrumento raro no gênero, americana diz que ''a indústria prefere trompetistas a violinistas''

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Por Jotabê Medeiros
Atualização:

Regina Carter toca um instrumento cada vez mais raro no jazz, o violino. A bordo do seu instrumento, ela acompanhou gigantes do jazz em anos recentes, como o baterista Max Roach e o contrabaixista Ray Brown. Em 2001, foi convidada para fazer um concerto em Gênova, Itália, e experimentar um violino que vale o seu peso em ouro: um Guarneri del Gesu que pertenceu ao compositor Paganini (1782-1840). Educadora, de 41 anos, já lecionou no prestigioso Berklee College of Music e participou da ópera jazzística Blood on the Fields, de Wynton Marsalis. Regina, que esteve pela última vez no Brasil em 2000, para o Chivas Jazz Festival, volta ao País para tocar na sexta e no sábado no Auditório Ibirapuera, acompanhada da Orquestra Jazz Sinfônica e do seu quinteto (Matthew Parrish, no baixo; Alvester Garnet, na bateria; Xavier Davis, no piano; e Darryl Harper, na clarineta). Ela falou ao Estado, por telefone, na semana passada. Que tipo de música brasileira você ouve hoje em dia? Tem interesse? Eu ouço de tudo. Não um único tipo de música, mas toda variedade. Mas o que quer que haja no meu CD-player, sempre haverá também lugar para a música brasileira. Eu tive a honra e o prazer de encontrar o compositor e violinista brasileiro Guinga, e o vi tocando ao vivo em Nova York. Um grande músico. Guinga não é tão conhecido do grande público no Brasil, é uma espécie de culto de poucos. É sempre difícil, porque muitas vezes a sua música não é bem aceita em sua própria casa, e você tem de ir para longe para depois ser reconhecido. Seu violino aparece em discos de Mary J. Blige e de Wynton Marsalis. Você cultiva um grande leque de colaborações, do pop ao mais erudito. Há muita gente no jazz fazendo isso hoje em dia, flertando com o pop, como Michael Bublé, Norah Jones, Diana Krall. Você acredita nesse cruzamento de gêneros? Sim. Não sei como é no Brasil, mas o que está se passando hoje em dia é que com os computadores, iPods, gadgets eletrônicos, as pessoas não têm mais de sair para ouvir, para descobrir a música, e estão perdendo um pouco o interesse na música ao vivo. Está tudo ao alcance dos seus dedos. Por um lado é bacana, porque se pesquisa mais a respeito da música. Por outro, é algo perigoso, porque as pessoas não vão mais em busca da música ao vivo. Isso mostra também que estamos perdendo um pouco o senso comunitário, nos tornando mais e mais ligados nas coisas eletrônicas, autocentradas. Creio que, por causa disso, os músicos não podem mais dizer que vão tocar somente jazz, ou música popular brasileira, ou música européia. Nós temos de encontrar um jeito de levar a música às platéias, não importa qual seja ela. Além do mais, jazzistas sempre foram o tipo de pessoas que buscaram explorar as culturas presentes em outros gêneros, outras músicas, outros estilos. Jazz é uma palavra que designa a cumplicidade. Basta pensar em Dizzy Gillespie, que viajou o mundo em busca de outras músicas, outras culturas. Eu acho que artistas de outros gêneros têm buscado elementos do jazz, mais do que o contrário, e isso é importante para tentar manter a música viva para as audiências maiores, massivas. Em vez de ficar fazendo download de música, eles estão sendo seduzidos para ouvirem e verem ao vivo a música. Você vem de uma forte formação de música erudita. Algumas pessoas costumam dizer que o jazz é a música erudita do século 20. E que há muitos jazzistas que têm o propósito de soar como se fossem eruditos, levando o jazz para o ambiente e a platéia da música de câmara. Como você avalia esse tipo de opinião? Primeiro de tudo, quando você diz música clássica, deve ter claro qual é a sua noção de música clássica. O que é clássico? A resposta parece que tem a ver com o lugar de onde a gente vem. Muita gente costuma associar imediatamente o termo a compositores como Beethoven. Mesmo nos Estados Unidos isso se dá assim. Mas a definição de música clássica para quem vive no Oeste da África é diferente. Então, há a música clássica européia, Beethoven, Mozart, Bach. E há a música clássica americana de Duke Ellington, de Ella Fitzgerald, de Charles Mingus. O Brasil tem sua música clássica, a África tem a sua. E acho que há uma noção generalizada de que a música clássica européia é a única, que foi a maior que existiu e tudo o mais está abaixo dela. Não é verdade. Recomendo que as pessoas saiam por aí e ouçam, e descubram o quão intensa, bela e poderosa é a música que existe mundo afora, em lugares que a gente nem imaginava. Quando se estabelece esse tipo de divisão, é por esse motivo que existe tanta discórdia, tanto ódio, tanta segregação. Quando se aprende a respeitar a cultura do outro, a música do outro, começa-se também a respeitar o outro. Os músicos podem começar isso. É possível contar nos dedos das mãos os jazzistas que escolheram o violino como seu instrumento. O que justifica a sua escolha? Gostaria de dizer que tive uma escolha. Toquei piano quando era criança, mas subitamente fui para o lado do violino. Tive de fazer isso. É como a cor de sua pele, você não a escolhe, vem com você. O que posso dizer é que, qualquer que seja a escolha, não vai ser fácil para ninguém. Minha mãe foi responsável pelo maior incentivo que recebi quando resolvi tocar jazz com o violino. Ela me disse: ''Apenas mantenha o foco naquilo que você ama, e fique atenta àquilo que você quer.'' Amo fazer o que faço. Sei que a indústria fonográfica não tem demonstrado tanto interesse em violinistas como demonstra ter por trompetistas, mas é o que eu amo fazer. Você costuma dizer que o violinista francês Stephane Grappelli foi sua inspiração, mas não sua influência. O que quer dizer com isso? É que sou mais ligada à tradição afro-americana, mais agressiva. Adoro Stephane Grappelli, ele era bom demais, mas era muito... educado. Gosto de um pouco de sujeira. Uma das coisas que você defende é o uso da música com uma característica medicinal, curativa. Pode falar um pouco sobre essa tese? Sim, é verdade. Minha mãe morreu há 3 anos. Antes de morrer, ela estava muito doente. Não podia nem sequer se comunicar. Ela adorava ouvir a música de Carla Cook, de Ella Fitzgerald. Então, eu passei a tocar para ela. Nesses dias, enquanto eu tocava, notava que os sinais vitais dela se estabilizavam. É uma coisa antiga, a música é algo poderoso. Nos países do Leste Europeu, eles sempre a usaram como algo terapêutico. Então, tenho desenvolvido esse trabalho, que é tocar para doentes terminais, ajudar pessoas a passar da vida para a morte. Linhagem STUFF SMITH (1909-1967): Formou, com Joe Venuti e Stephane Grappelli, a tríade sagrada do violino no jazz. Foi o pioneiro e costumava citar Louis Armstrong como influência. Também cantava. STEPHANE GRAPPELLI (1908-1997): Paradigma do violino no jazz. Erudito, formou com o violonista cigano Django Reinhardt uma das mais férteis parcerias da música. JEAN-LUC PONTY: O francês foi o pioneiro em introduzir o violino eletrificado no jazz-rock, nos anos 1970, assim como a utilização de seqüenciadores e sintetizadores nos anos 1980. JENNY SCHEINMAN: Caçula do instrumento, Jenny não é tão conhecida, mas é uma estrela do jazz do Brooklyn, e sua contemporaneidade a faz ser comparada a astros pop, como Sean Lennon e Norah Jones. Serviço Regina Carter. Auditório Ibirapuera (800 lugs.). Av. Pedro Álvares Cabral, s/n.º, portão 2, Pq. do Ibirapuera, 3629-1075. 6.ª e sáb., 21 h. R$ 30

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