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A Tempestade virtual de Próspero

Personagem de Shakespeare que manipula outros com magia ganha tradução cênica para a era digital da diretora Beth Lopes

Por Beth Néspoli
Atualização:

Provoca uma sensação difícil de definir - talvez a de estar perdido num mundo estranho - caminhar em meio à grandiosa cenografia instalada no igualmente imenso palco do Teatro Popular do Sesi onde estréia hoje para convidados o espetáculo A Tempestade, de Shakespeare, dirigido por Beth Lopes. Estantes metálicas formam uma espécie de muralha em formato de semicírculo no palco, uma verdadeira montanha de sucata da era da informática: teclados, mouses, monitores, CPUs. A poucos dias da estréia técnicos ainda ajeitam fios, ouvem-se batidas, os refletores piscam em diferentes cores nos acertos finais da iluminadora Marisa Bentivegna. No som, Marcelo Pellegrini, indicado para o Prêmio Shell pela trilha de A Noite dos Palhaços Mudos, ensaia algumas músicas com os atores, testa volumes, densidades, intensidades. "Até ontem estávamos trabalhando em sala de ensaio. A primeira noite no palco muda muito", diz Beth Lopes. Além da muralha cibernética o palco comporta dois grandes telões em posição de grande visibilidade: neles, são projetadas as imagens criadas pelo videomaker Jurandir Müller. Elas ajudam a narrar essa história que começa com um naufrágio. A tradução e adaptação, de Luiza Jatobá, não altera essencialmente a trama. "Fizemos cortes e algumas atualizações de linguagem apenas", diz a diretora. Próspero, o protagonista dessa história, é um dos grandes personagens de Shakespeare. Era duque de Milão, mas por conta de um golpe de seu irmão Antônio, que se alia a Alonso, Rei de Nápoles, é deposto e jogado ao mar numa precária embarcação com sua filha Miranda, na época uma criança. Graças à ajuda de um fiel conselheiro, Gonçalo, que coloca alimento e roupas no barco, ele chega até a Ilha onde transcorre toda a ação. Homem culto, obcecado pela leitura, domina os espíritos daquela terra esquecida. Liberta Ariel do tronco onde a bruxa Cicorax o prendera há anos e o faz seu escravo, assim como o deformado Calibã, filho da mesma bruxa. Quando a história tem início, um navio com seus inimigos está passando pela Ilha e graças aos seus poderes mágicos, Próspero provoca o seu naufrágio. Em seguida, traz tripulantes e passageiros sãos e salvos até a Ilha, porém separados, aparentemente perdidos. Ferdinando, o filho do Rei Alonso, fica só, mas ele e Miranda se conhecem se apaixonam um pelo outro. O Rei Alonso sofre pela perda do filho que supõe morto e, em companhia de Gonçalo, vai ter de superar outros obstáculos provocados pela ambição sem limite do usurpador do Ducado de Milão, Antônio. A comicidade da peça fica por conta da dupla Trínculo e Estéfano, bêbados e medrosos, que vão se aliar a Calibã imaginando roubar Próspero. No fim, depois de sofrerem de formas diferentes com os poderes mágicos do senhor da Ilha, todos acabam se dando conta de seus erros, conciliam-se, e Próspero volta à civilização. "Para mim interessa essa metáfora de uma turbulência - também mental e sentimental - que leva a um lugar solitário e distante, um exílio, e à construção de um novo mundo", observa Beth Lopes. "Na verdade, Próspero caíra também porque se interessava mais pelos livros do que pelo ato de governar Milão", argumenta a diretora. Não por acaso ele decide abandonar a magia, com sua possibilidade de dominar e manipular os homens, em sua volta a Milão. A primeira coisa que chama atenção nessa encenação é que há apenas quatro atores em cena. "Ao chegar à Ilha os personagens se dividem em grupos e isso permite o jogo teatral do revezamento", diz Beth. Para ela, há três blocos bem demarcados: os nobres, com sua empáfia, arrogância e oportunismo; o espaço do jogo amoroso, entre Miranda e Ferdinando, e o jogo lúdico e cômico dos palhaços que são os servidores bêbados. "Há um inteligência sombria na ambição dos nobres em busca de mais poder, em contraste com a inteligência iluminada de Próspero, que trabalha pela conciliação, mas do que pela vingança", diz. "Mas ele é também um personagem ambíguo o tempo todo. Não deixa de ser o colonizador, que chega à Ilha e escraviza as divindades locais." Por outro lado, a diretora ressalta que esses espíritos, manipulados por Próspero, também propiciam aos homens "olhar para dentro". E as informações de que dispõe esse personagem o levam a criar um "ambiente virtual" que vai provocar autoconhecimento. Essa idéia perpassa toda sua concepção. "De certa forma, Próspero provoca conhecimento em rede, no sentido que falava Deleuze, e que a tecnologia digital contribui para tornar realidade." Como se sabe, desde que fundou sua Cia. de Teatro em Quadrinhos, em 1989, Beth Lopes vem trabalhando na junção de linguagens, sempre buscando mesclar teatro, quadrinhos, cinema, linguagem gráfica. Esse visual pode ser esperado nessa encenação. "A tecnologia em cena sempre me atraiu", afirma Beth. "Gosto das linguagens visuais e a informatização tem tudo a ver com certos aspectos da sabedoria do Próspero. Naquela Ilha o prazer da imaginação se desdobra em imagens e cria conexões transformadoras." Serviço A Tempestade. 80 min. 12 anos. Teatro do Sesi (456 lug.). Avenida Paulista, 1.313, telefone 3146-7405, metrô Trianon-Masp. 4.ª, 5.ª e sáb., às 20 horas; dom., às 19 horas. Grátis (sáb., R$ 10). Até 14/12

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