A surpreendente trama fragmentada de Lobo Antunes

Escritor português, de origem brasileira, volta ao País depois de 26 anos para falar sobre os anti-heróis que povoam sua prosa

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Por Ubiratan Brasil
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O escritor português António Lobo Antunes vive assombrado pela literatura. Em um de seus mais recentes pesadelos, ele se viu morto e cercado por homens que discutiam sobre sua obra com argumentos muito inteligentes. "Meu desespero estava na impossibilidade de me levantar e dizer: ?Não é isso! Eu não quis dizer isso!?", disse ele, em conversa por telefone com Estado, desde Lisboa. Ouça trechos da entrevista Como um dos principais autores em língua portuguesa da atualidade, a incompreensão não parece incomodar Lobo Antunes, uma vez que sua escrita literária está sob constante evolução, notadamente subversiva e radicalmente original. Aos 66 anos, Antunes leva ao extremo a quebra da estrutura narrativa. É o que o transforma em um dos principais convidados da Festa Literária Internacional de Paraty, que começa no dia 1º de julho (veja texto na página ao lado). E o que torna ainda mais atraente o lançamento no Brasil de dois livros seus, Explicação dos Pássaros (256 páginas, R$ 39,90 ) e O Meu Nome É Legião (336 páginas, R$ 53,90), ambos editados pela Alfaguara. Trata-se de subversão pura - o primeiro, publicado originalmente em 1981, mescla presente, futuro e lembranças do passado para narrar os últimos dias de um homem que, como um personagem das tragédias gregas, ruma a um destino inescapável. E, em O Meu Nome É Legião, de 2007, as falas, os pensamentos e os atos de diversos personagens se fundem em um texto denso, que narra os crimes praticados por oito garotos. Psicanalista, ele venceu o Prêmio Camões em 2007. E, neto de brasileiros (o avô nasceu no Pará), Lobo Antunes não vem ao Brasil desde 1983, oportunidade em que vai aproveitar para rever parentes, como uma prima que mora no Rio. O assunto marcou o início da conversa com o Estado. Por que você ficou tanto tempo sem vir ao Brasil, uma vez que tem ligações familiares a partir de seu avô? Avô, bisavô, tataravô... As explicações são mais de foro íntimo. Vivo para escrever, mas, quando aceito convites de viagens, fico sem escrever. E não tenho jeito para promover minha obra. Mas é algo de tradição familiar, pois, meu avô só voltou uma vez ao Brasil - e havia cerca de 300 pessoas à sua espera, em Belém. Nunca mais retornou. Lembro-me que, quando criança, esperava ansioso pela volta de algum familiar que tivesse ido ao Brasil, pois sempre traziam cocadas maravilhosas do Pará. Foi na casa de seu avô, aliás, que você aprendeu a gostar da obra de Monteiro Lobato? Na verdade, foi na casa do meu pai - para meu avô, quem gostava de ler era considerado maricas. Mas, de alguma forma, foi ele quem nos incutiu o gosto pela literatura brasileira: em casa, tínhamos José de Alencar, Aluízio Azevedo (que eu achava muito estranho) e, claro, Monteiro Lobato, que me fez admirar o Saci. Também os poetas do século 19, até os considerados de segunda linha como Francisco Júlia, Cruz e Souza. Penso que conheço bem a literatura brasileira. Tal conhecimento se explicaria apenas por motivos familiares? Não apenas por isso, mas também pelo contato com as pessoas - sempre vivi com um pé no Brasil, outro em Portugal. E, claro, pelo ofício que se tornou a literatura para mim. Já disse inúmeras vezes que não existem poetas melhores em língua portuguesa como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Eles são superiores, mas a poesia brasileira é rica em grandes nomes, como Jorge de Lima, Cassiano Ricardo, Sousândrade e Mário Quintana, cujos poemas da fase final da vida são maravilhosos. E o que dizer de Olavo Bilac, hoje tão desprezado? Ele tem de ser lido no contexto de sua época. Não é um poeta para a eternidade, como Drummond ou Cabral, mas tem seu mérito. Recentemente, descobri outro poeta que me entusiasmou: Manoel de Barros. É muito bom. Não me conformo como tal patrimônio é tão esquecido. Você acredita que o mesmo acontece com autores de prosa? Sim. Afinal, quem lê Oswald de Andrade, Raduan Nassar ou Mário de Andrade hoje em dia? Só malucos como você e eu. Tenho muitas saudades também de Jorge Amado, um dos homens mais generosos que já conheci, de um amor infinito. Confesso ter mais saudade dele que de sua obra. Sua admiração pela poesia é tamanha que até inspirou o título de seu próximo livro, Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?, a ser lançado em outubro. É uma canção popular do século 19, de camponeses analfabetos da fronteira com a Espanha, que nunca viram o mar. Trata da chegada dos reis magos. Acredito que seja uma das melhores obras que já escrevi. É cada vez mais difícil escrever, pois temo desapontar os leitores que acreditam em mim. Mas sua obra é cada vez mais editada no Brasil, ao contrário de anos atrás, quando você reclamava de não ser lido aqui - especialmente por tratar de temas atuais, como O Meu Nome É Legião, ambientado em um bairro de periferia de Lisboa, marcado por violência urbana. É uma história muito simbólica, pois Portugal se transformou em um país de imigrantes: são brasileiros e africanos de antigas colônias. Assim, os personagens são meninos que nasceram aqui, mas não têm nem a África que perderam, tampouco Portugal que não lhes dá nada. Vivem em uma franja de miséria e violência. Para mim, é também um livro sobre como escrever, em que o fim não interessa tanto como as razões simbólicas, que impõem uma narrativa polifônica. Escrevi sem saber qual seria o destino. O livro é um organismo vivo que me comanda - só me resta, portanto, obedecer. Não é o autor quem escreve os próprios livros, mas algo que existe em nós, em uma região que desconhecemos. Eu me sinto como um escritor que só encontra no lixo os assuntos que aos outros não interessam. Seriam, então, infundadas as notícias de que você não pretende mais escrever literatura? Não sei dizer. No ano passado, publiquei O Arquipélago da Insônia e agora, em outubro, o Que Cavalos... Depois, não sei. Agora, algo está em gestação, mas não sei dizer se é um livro. Ainda não sei qual é o sexo da criança (risos). Enquanto não descubro, vou continuar trabalhando. Nunca penso em publicar, apenas em escrever. A escrita é um fardo? Não, de forma nenhuma. Há momentos de prazer intenso, assim como de dúvidas cruciais: falsas perspectivas fazem com que um capítulo, por exemplo, seja iniciado mais de nove vezes. Não acredito em inspiração, mas em trabalho - a inspiração só chega quando o livro está pronto. Recentemente, você se curou de um câncer. Você acredita que essa experiência vá inspirar alguma obra futura? Não sei dizer. A doença é uma indignidade, uma resposta mal-educada da natureza. Foi um golpe duro, mas que me permitiu apreciar coisas que antes não enxergava e, sobretudo, a conhecer pessoas que enfrentam sofrimentos maiores. Mas o câncer me roubou a eternidade, porque todos nos sentimos eternos. Outras obras publicadas no Brasil Eu Hei-De Amar Uma Pedra (Alfaguara, 2007) Os Cus de Judas (Alfaguara, 2007) Conhecimento do Inferno (Alfaguara, 2006) Boa Tarde às Coisas Aqui Embaixo (Objetiva, 2004) Exortação dos Crocodilos (Rocco, 2001) O Esplendor de Portugal (Rocco, 1999) Fado Alexandrino (Rocco, 2002) Memória de Elefante (Objetiva, 2006) O Manual dos Inquisidores (Rocco, 1998) O Meu Nome É Legião (Alfaguara, 2009) Ontem Não te Vi em Babilônia (Alfaguara, 2008) Frases "Jorge Amado é um dos homens mais generosos que conheci. Confesso ter mais saudade dele que de sua obra. Tenho saudades de Jorge Amado, um homem muito adorável, mas não de sua obra" "É cada vez mais difícil escrever, pois temo desapontar os leitores que acreditam em mim" "O livro é um organismo vivo que me comanda - só me resta obedecer" "Sou um escritor que encontra no lixo os assuntos que aos outros não interessam" "Não acredito em inspiração, mas em trabalho; a inspiração só chega quando o livro está pronto" "O câncer me roubou a eternidade, pois todos nos sentimos eternos"

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