''A saída é a consciência ecológica''

Fritjof Capra fala do fascínio por Da Vinci, gênio que inspirou livro lançado no Brasil

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Há 33 anos ele surpreendeu o mundo da ciência ao lançar um livro de estranho título, O Tao da Física, que traçava um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental. A obra foi um best-seller instantâneo, preparando terreno para outras especulações místico-científicas que garantiram ao físico austríaco Fritjof Capra, hoje com 69 anos, a publicação de todos os seus ensaios sobre o assunto, sendo um dos mais conhecidos O Ponto de Mutação, lançado em 1982. Capra, que mora em Berkeley, Califórnia, lançou no ano passado um extenso estudo sobre um dos grandes pintores renascentistas italianos, A Ciência de Leonardo da Vinci, que agora chega ao Brasil (Cultrix/Amana-Key, tradução de Bruno Costa, 368 págs., R$ 45). Por telefone, de Innsbruck, Áustria, Fritjof Capra concedeu uma entrevista ao Estado, em que revela seu fascínio pela ciência de Da Vinci. O artista deveria ter sido citado em O Tao da Física, mas acabou ficando fora do maior êxito editorial do físico, que já esteve várias vezes no Brasil e deve retornar em novembro para uma série de palestras. Cientista, escritor e ativista político, Capra é um dos mais respeitados militantes do movimento ecológico, tendo escrito há quatro anos um livro sobre as conexões ocultas entre as ciências biológicas e sociais. Em A Ciência de Leonardo Da Vinci, o físico defende que o pintor foi o primeiro cientista moderno, desenvolvendo um método empírico como Galileu e chocando igualmente a Igreja Católica, que condenava experiências científicas fora das normas consagradas pelo clero - isto é, dentro da tradição aristotélica. Por 40 anos, Da Vinci manteve cadernos de anotações que, juntos, chegam a mais de 6 mil páginas, reveladoras de seu interesse renascentista. Capra diz que o artista se aproximou da ciência por conta da pintura, que, segundo Da Vinci, abarca em seu interior todas as formas da natureza. E arrisca dizer que o italiano foi o precursor da teoria contemporânea que vê o planeta como um sistema vivo, auto-organizado e auto-regulado. A seguir, a entrevista do físico. O senhor diz que Leonardo rompeu com uma tradição, desenvolvendo uma abordagem empírica da ciência que envolveu a observação sistemática da natureza. Por que os contemporâneos de Da Vinci não conseguiram pensar como ele? O fato de ser um artista pesou nesse pioneirismo, nessa maneira singular de ver o mundo? Sem dúvida. O conhecimento aristotélico, fundido à doutrina cristã por teólogos escolásticos, não admitia um pesquisador autônomo como Leonardo, que questionava esse conhecimento de um modo um tanto herético. Um século antes de Galileu, ele já desenvolvia um método empírico de observação sistemática da natureza - e não devemos esquecer que, antes de tudo, ele era um artista, com uma memória visual espantosa, a ponto de pintar com detalhes exemplares de plantas que floresciam na mesma época num quadro como A Virgem dos Rochedos. Para ele, arte e ciência eram sinônimos, ou quase isso. A arte era uma ciência de formas naturais, bem diferente da ciência mecânica que temos nos dias de hoje no Ocidente. Leonardo seria o que hoje em dia chamamos de pensador sistêmico, alguém capaz de pensar em termos de padrões. De acordo com esse ponto de vista, Leonardo foi um visionário da moderna teoria de Gaia, que sustenta ser o planeta Terra um ser vivo. De algum modo as investigações de Leonardo como um observador sistêmico ajudaram o senhor a formular suas teorias em O Tao da Física ou contribuíram para que o senhor concluísse que há uma série de padrões de organização que se repetem durante a vida, em todos os níveis e manifestações? Não propriamente. Já trabalhava com essas investigações há 33 anos. Portanto, não diria que ele me ajudou, mas me inspirou tremendamente. Leonardo tinha um profundo respeito pela natureza. Ele ficava impressionado com a diversidade e a variedade das formas, mas também ficava intrigado como espécies diferentes repetiam padrões semelhantes - e seus livros de anotações contêm inúmeros desenhos que traçam analogias entre as formas anatômicas de animais e seres humanos. Sua atitude de encarar a natureza como modelo e mentor levou-o a desenvolver um sistema muito parecido como o que os ecodesigners de hoje usam para criar projetos arquitetônicos, num mundo em que a palavra sustentabilidade ganha cada vez mais peso. Sem dúvida, os projetos de vilas e palácios de Leonardo da Vinci tentam integrar arquitetura e natureza, conforme o senhor observou. Infelizmente, esses cadernos de notas permaneceram por tantos séculos abandonados em alguma biblioteca empoeirada que o mundo se esqueceu como a Revolução Industrial trocou a visão orgânica que se tinha no Renascimento pela visão contemporânea, para a qual o mundo não passa de um sistema mecânico. O senhor acha que somos frutos dessa distorção, isto é, que agimos mecanicamente por crédito nesse paradigma? Acho que sim. Hoje só se fala em reengenharia. Vamos fazer uma "reengenharia da empresa", dizem, como se fôssemos todos máquinas. Também entre os médicos essa linguagem se tornou comum. O que eu e outros cientistas perseguimos é uma visão científica unificada da vida, ou seja, uma visão integrada das dimensões social, biológica e cognitiva. Essa minha crença se baseia em nosso conhecimento da evolução, porque ela já estava em curso antes do advento da vida como a conhecemos, um tipo molecular de evolução de grande complexidade. Incorporamos parte dos mecanismos que criaram bactérias em nosso DNA e estamos profundamente ligados à Terra como organismo vivo. Por isso, não há outra saída além da consciência ecológica. E sou bastante otimista com relação a uma mudança de mentalidade nos próximos anos. Hoje temos também uma palavra como interdisciplinaridade, que nos leva automaticamente de volta a Leonardo da Vinci. O senhor diz que o design de nossas instituições sociais futuras deve acompanhar os princípios da organização da natureza para que sejamos capazes de sustentar a rede da vida daqui por diante. E a religião? Leonardo viveu à parte dela, mas com uma visão de mundo decididamente espiritual. Embora não falasse em criação divina, tinha o maior respeito pelas invenções da natureza. Se nós, que já vivemos num mundo diferente, não ajudarmos a natureza a preservar a vida, automaticamente estaremos envenenados em poucos anos, a tal ponto que a religião significará pouco. O melhor que temos a fazer é aprender a viver de acordo com os princípios ecológicos. Ciência e religião não são incompatíveis. Elas podem e devem conviver. Hoje há centenas de livros sobre o assunto e, de certo modo, sinto uma ponta de orgulho por ter escrito O Tao da Física numa época em que as pessoas não levavam a sério essa possibilidade de diálogo. Mais de uma vez fui chamado de louco. De fato, após lançar O Tao da Física, o senhor escreveu um livro com um monge beneditino, David Steindl-Rast, Pertencendo ao Universo: Explorações nas Fronteiras da Ciência e da Espiritualidade (Cultrix, tradução de Maria de Lourdes Eichemberger e Newton Roberval Eichemberg). É possível que a ciência e a religião andem, realmente, de mãos dadas no futuro? Escrevi o livro em 1991 e acho que ele foi importante por estabelecer um novo parâmetro sobre espiritualidade e evolução científica. Como disse, ciência e religião não são antônimos. Elas podem oferecer, juntas, uma visão não mecânica do universo, bem distante do pensamento cartesiano. Pelo menos, é o que espero, sentado aqui diante dessas altas e belas montanhas de Innsbruck.

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