A saga fantástica de Jean Valjean

Sai pela Versátil a adaptação de Os Miseráveis, o mais conhecido dos romances do escritor francês Victor Hugo

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Os Miseráveis é uma daquelas histórias que entraram de vez para o imaginário da humanidade. A saga de Jean Valjean, a persistência malévola de Javert, a tragédia de Fantine. Quem, de uma maneira ou de outra, não ouviu falar desses personagens? Quem já não se comoveu ou se enraiveceu com eles? A monumental criação de Victor Hugo (1802-1885) foi acompanhada com fervor por gerações de leitores, jovens e nem tão jovens. Foi lida em versão integral ou condensada. A história chegou várias vezes às telas do cinema, a mais famosa delas com Jean Gabin no papel do herói. A mais recente vem sob a forma de uma minissérie de seis horas de duração, agora lançada pela Versátil (Caixa com 2 DVDs, R$ 74,90). Uma versão bastante interessante, deve-se dizer. Novamente dirigida por Josée Dayan, que se especializou nesses produtos de qualidade para a televisão francesa. São dela, por exemplo, as cinebiobrafias de Honoré de Balzac e de Margueritte Duras. Além disso, dirigiu a versão para TV de O Conde de Montecristo, folhetim famoso de Alexandre Dumas. Qual outro ponto em comum em todas essas produções? Sim, ele: Gérard Depardieu, o grande ator francês, possivelmente o mais conhecido em seu país e no exterior, também se especializou nesses papeis históricos. E sempre como protagonista. Ele faz Edmond Dantés em Conde de Montecristo, vive o atormentado Balzac e encarna Jean Valjean, o mais trágico e mais comovente dos personagens de Victor Hugo. Depardieu é tão bom ator, tão convincente e intenso que, depois de vê-lo, dificilmente concebemos outros nomes fazendo esses tipos fortes como Edmond Dantés, Balzac, Valjean. Este em particular, o forçado Jean Valjean, exigia alguém como ele, capaz de ir da brutalidade à delicadeza com a facilidade de quem vai à boulangerie da esquina e compra uma baguete. O personagem exige esses extremos. Valjean é um sentenciado, preso por um crime banal como furtar um pão para matar a fome. Na cadeia, sofre o diabo. Em especial porque cai na antipatia de um certo Javert, que irá persegui-lo ao longo de toda a ação. Valjean sai do cárcere devidamente embrutecido. Pede abrigo numa igreja e a primeira coisa que faz é levar os castiçais e talheres de prata do padre. É preso na fuga. Quando o apresentam à vítima, Valjean surpreende-se com a afirmação do padre de que não fora furtado. Em sua versão piedosa, ele havia presenteado o ex-presidiário com aquelas peças. O gesto toca o bruto no fundo da alma. Depois dessa passagem emblemática, sua história muda. Pode tornar-se um comerciante e industrial de sucesso e chega ao cargo de prefeito em uma pequena cidade, acobertado sob um nome falso. Valjean morreu para que nascesse o respeitável Monsieur Madeleine. Mas há o implacável Javert (John Malkovich). E há também Fantine (Charlotte Gainsbourg, que acaba de ganhar a Palma de Ouro em Cannes por seu papel no filme de Lars Von Trier, O Anticristo), essa figura trágica, que só poderia sair da pena de um Hugo ou de um Dickens. Para se ter ideia, Fantine é a mulher abandonada grávida na véspera do casamento. Cria a filha sozinha, e Hugo faz questão de mostrar que a vida de mãe solteira não era das mais fáceis na França do século 19. Ela é obrigada a deixar a criança com um casal de aproveitadores enquanto moureja numa fábrica para sustentar a garota, Cosette, que irá ter papel importante na trama, mais adiante. Mas Fantine, nem mesmo trabalhando como animal de carga, terá paz na vida, sendo obrigada a prostituir-se, etc. Enfim, o universo de Hugo era esse. O mundo da injustiça social, da opressão dos fracos, do cumprimento cego de uma lei criada para proteger interesses dos poderosos. O livro apareceu em 1862 e é um sucesso absoluto de público. Parece hoje bastante folhetinesco e dramático, às vezes melodramático, explorando ao máximo algumas de suas teses centrais, esta em especial: o homem é produto do seu meio. Se lhe forem dadas oportunidades, tende a melhorar. Se lhe fecharem todos os caminhos, ele se tornará um criminoso. A tese é iluminista. E progressista. Não é tão ingênua quanto supõe a frase hoje alvo de chacota dos "realistas": "O homem é bom, a sociedade o corrompe,etc.". Claro, tudo isso parece um bocado estranho ao cinismo contemporâneo, que supõe uma maldade inerente ao ser humano. Mesmo assim, se não dermos uma pequena e última chance a esse tipo de tese iluminista, se acharmos que melhorar as condições de vida e as oportunidades não terá qualquer efeito sobre a vida social, então o que fazer? É melhor relaxar e deixar a vida seguir seu curso. Quer dizer, o pessimismo extremo, o niilismo do "ninguém presta senão eu, minha família e meus amigos" conduz apenas ao imobilismo. E, em última análise, ao conservadorismo mais radical. Daí a atualidade de um romântico como Victor Hugo. No prefácio de Os Miseráveis, Hugo escreveu o seguinte: "Enquanto existir, pelas leis e costumes, uma danação social criando artificialmente infernos em plena civilização e complicando por uma fatalidade humana um destino que é divino...enquanto houver sobre a terra ignorância e miséria, livros como este não serão talvez inúteis. " Tudo está aí. Essa história humanista aparece com a roupagem de um filme de época bastante bem-feito e caprichado. O tom é um tanto acadêmico, mas o que garante interesse e grandeza ao espetáculo é mesmo o elenco afiado, com Charlotte Gainsbourg no papel da moça frágil, o melífluo John Malkovich como o impiedoso Javert e, claro, o grande Depardieu. Sua intensidade, sua honestidade e vocação sincera para esse tipo de papel nos fazem crer que existe mesmo uma força na bondade e que ela não está apenas no sonho dos românticos ou nas palavras de Hugo. Belo filme, de verdade.

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