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A realidade deixou de ser verdadeira

As Nuvens, de Juan José Saer, toca em questões decisivas da história argentina, como fraturas sociais provocadas pela violência

Por Ricardo Lísias
Atualização:

Em termos de traduções de obras estrangeiras para o Brasil, com certeza o ano de 2008 foi muito bom. Além dos bem-vindos clássicos, cujos lançamentos periódicos já estão se tornando tradicionais, tivemos a publicação de três excelentes romances argentinos, mais uma mostra da impressionante vitalidade da literatura dos nossos vizinhos. Ainda no primeiro semestre, saíram A História do Pranto, de Alan Pauls, e Ciências Morais, de Martín Kohan. Perto do fim do ano, não havia maneira de encerrá-lo melhor: As Nuvens, de Juan José Saer. Os três livros têm muitas ligações entre si, aliás algo comum na literatura argentina, outro sinal de sua maturidade. Os dois primeiros de forma direta e o clássico de Saer um pouco mais lateralmente, os três livros discutem questões decisivas da história de seu país, fazendo a literatura ir muito além de um mero acontecimento cultural para ocupar um espaço crítico e sensível entre as instituições sociais. Ou seja, ser de fato arte. História do Pranto continua o projeto de Alan Pauls, adotando o mesmo estilo de seus outros dois livros publicados no Brasil: O Passado e Wasabi. As frases longas, que ao chegar ao fim reproduzem certa nostalgia incômoda, casam-se com a dificuldade com que o protagonista, uma criança que vai crescendo durante a ditadura militar, relembra de um jeito entrecortado e áspero alguns momentos de sua formação. O texto é nervoso, cheio de nuances e tramas gramaticais e denuncia um domínio irreparável do idioma. A ditadura é tão oblíqua e sinuosa para a criança quanto a língua para o autor. Em português, História do Pranto (Cosac Naify, 88págs., R$ 29) chega em tradução excelente de Josely Vianna Baptista, aliás caso também de Ciências Morais (Companhia das Letras, 192 págs., R$ 38), de Martin Kohan, traduzido por Eduardo Brandão. De vez em quando, História do Pranto torna a voz infantil quase cruel, armando aqui e ali uma espécie de ressentimento histórico que o protagonista sente ao lembrar-se de ter sido, por um lado, apartado de alguma coisa muito importante e, por outro, lançado muito cedo em um mundo que talvez não lhe fosse o mais adequado. A separação fica por conta do ambiente familiar fraturado e, na maior parte das vezes, frívolo, e se torna o ponto alto do livro, gerando trechos de enorme impacto. Por sua vez, o que teria sido apresentado a ele com certa precocidade é a militância política, mais ou menos clássica à época do texto. Sobra a impressão de que Pauls diz que esse é um lado imaturo da sociedade argentina. Se o recurso estilístico de Pauls é o alongamento das frases para tornar a nostalgia tensa, o de Kohan é a diminuição dos espaços, fazendo a claustrofobia das personagens acumular uma violência pronta para explodir. Dessa forma, o país fica reduzido à cidade de Buenos Aires, a capital diminui-se só para o bairro central, ele acaba sendo o colégio, que vai encolhendo para ser apenas o banheiro masculino e ele próprio se reduz a um de seus cubículos, onde boa parte do livro se passa. A trama, do mesmo jeito, é bastante simples: uma inspetora de alunos acostuma-se à repressão até fechar-se no banheiro masculino para fiscalizar os rapazes que talvez estivessem fumando ali. Naturalmente, são os instintos que a levam passar horas lá dentro. Reduzidos quase à animalidade, ela e seu superior imediato protagonizarão, em cena dramática, a explosão de violência que a habilidade estilística de Kohan deixa represada. Entre parênteses, vale destacar que, de um jeito muito distante, a trama de Ciências Morais ecoa a de Amuleto, de Roberto Bolaño, também recém traduzido por aqui. Observando a recepção de primeira hora de Martín Kohan no Brasil, creio ser necessário esclarecer uma confusão: de forma alguma o livro cria metáforas ou metonímias da ditadura militar vivida pela Argentina entre o fim da década de 1970 e início da seguinte. O colégio onde a trama se passa não é a representação do país. Kohan se insere na tradição de Franz Kafka e Samuel Beckett: para os três, a literatura não comporta figuras e muito menos voltas retóricas. O que ela indica, por outro lado, é a tensão entre as possibilidades de expressão e a pertinência com que a arte (produzida ou recepcionada) intervém no próprio tempo em que é escrita, ou lida. Os argentinos sabem muito bem disso. As Nuvens, que chega ao mercado brasileiro também em tradução excelente de Heloisa Jahn, é outro exemplo da grandiosidade literária de Juan José Saer, que já nos tinha presenteado com outros clássicos da estatura de Ninguém Nada Nunca e O Enteado. Aos nossos tantos editores, uma dica que é ao mesmo tempo um apelo: além de grande romancista, Saer foi um ensaísta notável! Cheio de simbolismo, o romance descreve uma espécie de travessia, em que um médico psiquiatra (sintomaticamente chamado de doutor Real) organiza uma caravana para transportar alguns doentes mentais para o hospital que, com o chefe, ele cuidava no interior do país. Estamos no início do século 20 e a Argentina é ainda apenas um ajuntamento de estâncias com as instituições em formação. Na caravana, entre doentes, corpo médico e pessoal de apoio, estão representados todos os grupos sociais: a Igreja, a burguesia, os índios, os militares, entre outros. O embate, espinha dorsal da literatura argentina, entre a chamada civilização, mais ou menos representada pelo iluminismo médico, e a barbárie, no papel dos loucos, estrutura o livro, mas termina sem nenhuma solução, ao contrário do que iria ocorrer com o Martín Fierro e o Facundo, livros publicados depois da época em que Saer localiza o seu. O final, incrivelmente inverossímil mas absolutamente adequado, demonstra uma espécie de naufrágio. E no barco estariam (ou estaríamos?) todos, bárbaros e civilizados. Do século 19 para cá, aconteceu de tudo na região onde se passa o livro de Saer, definitivamente afastado de qualquer hipótese realista, de resto já inadequada sem dúvida. Saer percebe, arguto e grande artista, que a realidade deixou de ser verossímil há muito tempo. Se é que foi, algum dia. Ricardo Lísias, escritor, é autor de, entre outros, Anna O e Outras Novelas

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