A queda do sessentismo

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Por Daniel Piza
Atualização:

Virou lugar-comum observar que Barack Obama despertou tantas expectativas que não tem como não frustrá-las. Outro reparo banal é o de que ele não tem experiência e vai enfrentar uma quadratura com poucos equivalentes na economia e na política locais e mundiais. Mas negar suas qualidades, dizendo que ele é "vazio" ou "pode fazer muito pouco", é deixar de perceber o que ele mesmo apontou em seu discurso de posse: que as coisas mudaram, como sempre mudam, e os dogmáticos à direita ou à esquerda são incapazes de lidar com elas. Nesse sentido, ele pode não realizar, mas até o momento representa com aparente consistência uma passagem de geração, uma transformação cultural em curso. A mentalidade sessentista, o modo de pensar dos anos 60 (e sua extensão festiva, os anos 70), começa a apear do poder. Mas não em toda parte. Um dos poucos que captaram isso foi David Brooks, do New York Times, em artigo traduzido por este jornal na quarta-feira. Ele fala do mundo que ascendeu depois da Guerra do Vietnã e de Martin Luther King e que levou à cultura do narcisismo e ao suposto fim das ideologias ao menos no Ocidente. Nos anos 80 e 90, essa batalha de valores morais individualistas que marcou os "baby-boomers" foi dominante; autores conservadores como Francis Fukuyama a chamaram de "a grande ruptura", lamentando a perda de coesão social, da estrutura familiar, da ordem, etc., ao passo que a esquerda cada vez mais se fechou em bandeiras tribais, em causas de minorias, em aversão à tradição dos "machos brancos mortos". Mas, como diz Brooks, esse ciclo chegou ao fim e Obama é um exemplo da renovação incipiente. Com sua família multicultural, sua combinação de moderação com liberação, sua defesa de agendas como energias limpas, pesquisas genéticas e diplomacia multilateral, sua rejeição tanto do tributarismo democrata como da desregulamentação republicana - com isso tudo, ele rompeu com o padrão dualista que dominou a mentalidade do século 20 e teve sua expressão mais paradoxal justamente na contracultura. Entre pragmático e idealista, ele defendeu um Estado presente e enxuto ao mesmo tempo, pois o mercado tem um poder incontestável de "criar riqueza e expandir liberdade", mas deve ser vigiado para que mantenha equilíbrio e favoreça cada vez mais pessoas. "O tempo de sermos conservadores, de protegermos interesses estreitos e adiarmos decisões difíceis, esse tempo seguramente passou." Claro, nem tudo passou, e ainda há muito o que avaliar e refletir. Note que Obama, apesar de já ser um "ícone pop", como se diz nos suplementos culturais, nunca se pautou por messianismo, nunca se pintou como salvador da pátria. Mas o público pensará da mesma forma? Como a opinião coletiva, em meio à crise, pode não estar contagiada pelo emocionalismo? De qualquer modo, as questões já não podem ser enfrentadas nos mesmos velhos termos e com os mesmos velhos atos. Aos 47 anos, Obama pertence à geração que marretou o Muro de Berlim e desbravou a Era Digital - e que não vê a solução dos problemas depender de um sistema, de um "ismo", de uma abstração doutrinária, mas que também recusa o cinismo dos que desdenham da capacidade humana, dos que reduzem a sociedade a uma luta pela sobrevivência com cartas marcadas no genoma. No Brasil, FHC e Lula representaram uma convergência mais cínica do que prática a uma política de centro, pois não abandonaram os clichês dos anos 60-70, os falsos dilemas como Estado mínimo vs Estado social. Lula é uma curiosa mistura, apropriadamente local, entre gestos conservadores - as menções a "lar estruturado" ou "soberania nacional", a familiaridade quase nula com ciência e tecnologia, as alianças com a oligarquia política - e o apego afetivo à agenda da esquerda, do "socialismo democrático", da crença na máquina estatal como "locomotiva" da economia. Infelizmente, os candidatos no horizonte da sucessão também respiram sessentismo a cada poro, como José Serra e Dilma Rousseff. Ainda pagamos o atraso de um ciclo autoritário de 20 anos; por mais que essa geração de exilados possa ter legitimidade e competência pessoal, ainda está presa a seu tempo. Cadê o futuro do país do futuro? RODAPÉ Até pelo que está dito acima, a publicação das cartas de Joaquim Nabuco e os Abolicionistas Britânicos (Topbooks, org. Leslie Bethell e José Murilo de Carvalho) é da maior importância. A relação dele com a Anti-Slavery Society de Londres foi fundamental para a abolição brasileira, mostrando que seu papel foi muito maior que o de uma fachada branca e aristocrática do movimento. (Eis um livro em falta: uma história cultural da luta pelo fim da escravidão no Brasil.) As cartas também comprovam sua decepção com o fim da monarquia na mesma conjuntura. Acima de tudo, mostram como ele previu que a mentalidade escravocrata se perpetuaria no exercício de poder à brasileira, no centro, portanto, da ideologia nacional da "cordialidade" e "suavidade": "A oligarquia política que governa este país não pôde resistir aos brados pela abolição e deu um jeito (sic) de substituir o projeto de lei da abolição por um que elimina a escravidão nos melhores termos possíveis para as pessoas nela interessadas. (...) É um esquema totalmente inútil e absurdo que vai ajudar os fazendeiros a se livrarem dos seus escravos com uma perda mínima, um esquema que imporá grandes sacrifícios aos contribuintes sem garantir qualquer benefício verdadeiro à indústria agrícola. (...) Nós liberais não seguimos cegamente o gabinete nessa tentativa de fazer com que a morte e o enterro da escravidão sejam tão suaves que ninguém vai se dar conta deles." (1885) O CORVO O bicentenário de Edgar Allan Poe foi marcado por chavões como "o precursor do romance policial" e comemorado com festas macabras, etc. Mas Poe foi muito mais do que isso. Há em suas Histórias Extraordinárias um teor filosófico, uma reflexão moral, que raros policiais atingem. Poe, em certos aspectos um precursor de Freud, diagnostica os males que o racionalismo causa à razão, sobretudo ao trabalhar com princípios inflexíveis, com uma lógica que não leva em conta as esquivas intenções humanas. Em O Gato Preto, o primeiro crime do narrador é ser inocente, ingênuo demais, em sua associação entre honra e bons costumes. Em certo momento, menciona as "gradações quase imperceptíveis que, durante muito tempo, a razão forcejou por rejeitar como imaginárias" (o que também lembra Machado de Assis: "Em matéria de culpa, a graduação é infinita"). Além de tudo isso, ele foi um bom poeta, com o lendário O Corvo, que ri do purismo classicista, e um ensaísta fundador do pensamento literário americano. Isso tudo em 40 anos de vida. O corvo vai continuar ali para sempre. MINICONTO O advogado viu o sinal amarelando e entendeu que deveria acelerar o carro em vez de reduzir. O motoboy na perpendicular entendeu o mesmo. Pou!!! O motoboy foi jogado a uns dez metros de distância, deu um grito e ficou gemendo. O advogado, com mãos e pernas tremendo, foi até ele entre irritado e comovido. Ajudou a tirar o capacete e o reconheceu: era o boy do escritório, o Pulga, que o olhava com raiva. Imediatamente o advogado olhou para os envelopes pardos que se espalharam pelo asfalto. De um deles escorregou um contrato que tinha sua assinatura. "É pra ontem!", gritara ao entregá-lo ao Pulga naquela manhã. Virando o rosto de volta para ele, por uma fração de segundos torceu para que não fosse nada e ele se levantasse e continuasse o serviço do dia. Afastou o pensamento chacoalhando a cabeça e estendeu a mão para Pulga, que segurava o tornozelo fraturado e urrava de dor. "Vem, te levo pro hospital." Pulga se esforçou para levar a mão para dentro do casaco, pegou o celular e o estendeu ao advogado: "Doutor, liga pro meu pai primeiro." POR QUE NÃO ME UFANO (1) John Neschling foi demitido da Osesp depois de dar entrevista em que dizia que foi ele sozinho que a fez renascer, como se o dinheiro que puseram em suas mãos e os músicos que estavam sob sua batuta não fossem nada - e como se a orquestra não pudesse sobreviver a ele. Os megalomaníacos sempre se engasgam com as próprias palavras, por mais que tentem calar as dos críticos. POR QUE NÃO ME UFANO (2) A respeito da coluna passada, em que apontei várias causas para azia na leitura dos jornais - antes mesmo de saber que 650 mil empregos foram fechados em dezembro -, recebi algumas mensagens muito significativas. Uma delas é assinada por Custódio, o mesmo nome do confeiteiro do famoso episódio de Esaú e Jacó, e diz: "Como uma má gestão tem quase 90% de aprovação? Um presidente é eleito pelo povo e é o povo que tem que avaliar, não elitistas como você." Ou seja, em duas linhas ele quis me proibir de criticar o governo e me excluir do povo brasileiro, como se eu não tivesse nascido aqui e não pagasse aqui todos os impostos que pago. Quis confiscar minha profissão e minha cidadania...

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