A poética cênica da Cia. Triptal

Com Longa Viagem de Volta para Casa, grupo amplia os simbolismos de O?Neill

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Por Redação
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Um elenco que se mantém coeso há cinco anos remoendo peças de um único dramaturgo é um acontecimento raro na vida teatral paulistana. Em 2003, sob a direção de André Garolli, um grupo de jovens atores associado ao elenco do Tapa encenou Rumo a Cardiff, uma das "peças do mar" de Eugene O?Neill. Desde então o grupo, com o nome de Companhia Triptal, vem encenando outras peças desse conjunto e esforçando-se para manter em repertório o projeto Homens ao Mar. Escritas e encenadas nas duas primeiras décadas do século 20, apreciadas como esteios da dramaturgia norte-americana e, de um modo geral, influências poderosas sobre a modernização do teatro ocidental, as peças curtas sobre a vida dos marinheiros teriam cumprido a missão e adormecido no cânone se fossem compreendidas apenas como registro naturalista desses trabalhadores do mar. Como tudo mais mudou a navegação, mudaram os marinheiros e, sobretudo, quebrou-se o prolongado isolamento que tornava tão peculiares os laços entre a tripulação confinada durante meses no espaço instável dos navios. Por essa razão o aspecto etnográfico das peças, de considerável impacto sobre o panorama teatral norte-americano no período em que foram escritas, é um elemento recalcado nesse conjunto de encenações. Longa Viagem de Volta para Casa, a mais recente (mas não a derradeira) produção do grupo é como os anteriores, um espetáculo que amplia os simbolismos do texto e acentua o caráter de representação para se afastar deliberadamente da fidelidade documental. Na tradução de Fernando Paz, a algaravia multinacional dos marinheiros se uniformiza em uma linguagem de pobreza vocabular e sintática. Não há dúvida de que se perde, desse modo, a singela melodia dos sotaques e o sal das expressões idiomáticas, mas, em compensação, o espetáculo livra-se igualmente da armadilha do pitoresco. Esses homens expressam de modo uniforme a condição semi-afásica dos que vivem confinados a uma experiência restrita. Suas vidas se resumem, enfim, ao trabalho duro e a pequenos intervalos de dissipação nos cais de passagem. Há somente ações repetitivas e escassos substantivos nesse universo. O que a encenação dramatiza com maior ênfase é, portanto, o desamparo, a fragilidade de seres à deriva ainda quando estão fora do mar. Enquanto a dura vida no convés e nos porões cria um amálgama humano, a taverna do porto londrino é um ambiente onde cada um luta por si. A dimensão sinistra e sedutora do barzinho de cais é sugerida em primeiro lugar pela situação do espaço cênico. Chega-se a ele atravessando a obscuridade de um porão onde reverberações da vida noturna se acomodam em nichos. Todo o entorno está na penumbra, sem contornos definidos, e no interior da taverna o colorido das luzes faz brilhar frascos e copos, disfarça o estado lastimável das mulheres e oculta a tramóia dos gatunos especializados na arte de ludibriar marujos embriagados. O desempenho acentuadamente grotesco dos malandros deslizando como uma massa viscosa em meio aos objetos de cena sugere a atmosfera estranha que irá a um só tempo seduzir e tornar indefeso o grupo de marinheiros. É importante, nesse panorama desenhado pelo espetáculo, que os marujos entrem em cena como um conjunto solidário, aproveitando a folga de acordo com a sua compreensão de prazer. Ao acrescentar um prólogo com Olson para explicar melhor o ponto de vista da encenação, a entrada surpreendente de um coletivo ingênuo e quase infantil ameaçado por uma conspiração malévola perde impacto, porque um dos homens já apareceu sozinho no interior da taverna. Na verdade, a tonalidade pausada e quase funérea do espetáculo já indica de modo satisfatório que o sonho do marujo que quer rever a mãe e tornar-se lavrador não é factível e tampouco singular. O chamado do mar e a atração terrestre são uma dualidade perene que a peça e o espetáculo esclarecem muito bem. Dividido em dois blocos para representar o embate desigual entre os trabalhadores de mar e os malandros da terra, o elenco tem um excelente desempenho conjunto. Não são as personagens que impressionam pelo desamparo ou pela agressividade, mas, sobretudo, a interação entre vítimas e predadores igualmente lastimáveis. Além desse entendimento que vem do estudo aplicado do texto, o espetáculo da Cia. Triptal tem essa qualidade misteriosa que, por falta de palavras, chamamos de poesia cênica. Esses marinheiros parecem instáveis como se estivessem ainda sobre o tombadilho, há uma lembrança de sal e maresia impregnando tecidos e madeira e o mar que nem vemos e nem ouvimos é o ponto de fuga imaginário.

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