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''A poesia tem que me provocar''

O ato de criação do poeta não segue regras definidas - trata-se de um choque que eletriza a mente

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

A poesia é, para Ferreira Gullar, uma energia. Ele também é cronista, crítico, pintor, mas são meros ofícios para garantir a sobrevivência - é na criação de poemas que Gullar se sente realmente um homem livre. Basta observar sua obra mais conhecida e divulgada, Poema Sujo. Considerada por muitos como uma das principais realizações poéticas do século passado, foi escrita em 1975, quando o poeta ainda vivia forçosamente exilado em Buenos Aires. Uma rápida leitura e a constatação de que o poema é um doloroso canto em favor da liberdade. Próximo de lançar um livro com novos poemas, Em Alguma Parte Alguma, Gullar confirma que, sem se filiar a nenhuma escola literária, seus versos sempre avançaram para todos os lados, testando experimentalismos e abandonando regras fixas. Na entrevista para o Estado, realizada por telefone, ele comenta a luta para transformar em poesia o choque e o espanto que determinados objetos ou mesmo sensações lhe provocam. Como está a fase final do livro Em Alguma Parte Alguma? Não consigo planejar meus livros. Eles nascem à medida que os poemas vão surgindo. Não tenho planos: aos poucos, a obra vai tomando forma, vão surgindo caminhos que definem o rumo dos poemas. Nunca sei quando está pronto. Mesmo enfrentando uma certa pressão da Maria Amélia (editora da José Olympio), respondo sempre que o livro é que tem de me dizer que está pronto. Se ele se cala, não posso publicar (risos). Mas acho que agora já posso editá-los. São poemas escritos ao longo destes dez anos ou há algum material mais antigo? Sim, comigo é sempre assim. Não sou como alguns poetas, que planejam a própria obra: "Vou escrever um poema sobre tal tema" e assim o fazem. Comigo é diferente. Surgem indagações, perplexidades que encaminham a poesia. Claro que assumo o controle à medida que os assuntos vão se manifestando. Mas o que conta é a qualidade: é essencial que eu me emocione com o poema; afinal, sou seu primeiro leitor. Você se divide em uma série de atividades (é colunista de jornal, escreve ensaios, pinta) mas, no geral, tem uma produção menor na poesia. Para mim, o mais importante é a poesia - o restante é secundário. Por isso mesmo, ela é escassa. Não é um trabalho como uma crônica, que me impõe exigências de data e tamanho. A poesia nasce do espanto, quando a vida me revela algo que eu desconhecia. Ali está a reflexão fundamental. O restante, eu faço com prazer e responsabilidade, reescrevendo quando necessário. Mas poesia é um departamento à parte. Você costuma dizer que não tem dois livros iguais um ao outro. Assim, a forma de criar um poema muda de um para outro? Às vezes, sim. Como não é nada planejado, as regras não são definidas. Existe apenas uma exigência grande de economia, de emoção. O fazer do poema é um improviso, uma invenção. Como já disse, nasce do espanto: você acorda e, ao olhar para o céu, observa uma determinada nuvem azul e aquilo provoca um choque. Como descrever aquilo? É nesse processo que invento uma forma de dizer, descubro um caminho diferente no próprio realizar do poema que é incorporado ao trabalho e essa rotina acaba se repetindo na feitura de outros poemas. Escrevi, certa vez, sobre o cheiro do jasmim. De noite, saindo da casa da Cláudia (Ahimsa, sua companheira, que conheceu em 1994), levei um choque quando senti o perfume vindo do jardim do prédio. Decidi escrever um poema sobre essa sensação. Depois de pronto, quando fui reler, surgiu outra ideia, derivada do poema, algo relacionado sobre a natureza do perfume, do cheiro - um tipo de desordem a que o olfato dá ordem. Isso me fez avançar, discutir mais sobre a ideia da desordem. Por fim, escrevi outro poema, um adendo ao primeiro, depois de uma sucessão de descobertas. Feito isso e passado algum tempo, é como se aquele veio se esgotasse. Por isso, um livro não é igual ao outro. Quando publico, tenho a impressão que aquele caminho que descobri por acaso já se esgotou. Aí, fico até um ano sem escrever algo, com a sensação de que não produzirei mais nada. Até surgir outra coisa diferente. Veja bem, não me preocupo em escrever livros distintos, mas verifico que a luta corporal não é igual entre um livro e outro. Um exemplo: escrevi o Poema Sujo em 1975 e publiquei um ano depois. O livro seguinte, Na Vertigem do Dia, nasceu com elementos do anterior. Mas, se o Poema Sujo é sinfônico, com movimentos, o Na Vertigem é música de câmera. Há temas semelhantes, mas em outro tom. Uma curiosidade de leitor: o que influi para um poema ocupar apenas uma página enquanto outro necessita de várias delas? Quando começa, o poeta não sabe. Às vezes, sabe apenas que será maior. Quando comecei o Poema Sujo, eu sabia que seriam muitas páginas, entre 70 e 100. É inexplicável. A matéria que eu descobrira e que inspiraria o poema era rica, portanto, eu sabia que seria algo muito longo. Outros não - começo a escrever, penso que vai ser curto e acaba um pouco maior do que eu supunha. O processo é que determina o tamanho. Como eu disse antes, o poema é uma invenção. Ao decidir escrever sobre o jasmim, não tenho ideia do que virá. Se soubesse, não escreveria. Assim, não é possível determinar o tamanho, pois, durante a escrita, por conta da relação de acaso, abre um caminho novo dentro do poema e ele cresce de maneira inesperada. Quando escrevo, é uma aventura, uma invenção da vida. Você rascunha esboços? Não. Acontece assim: às vezes, escrevo o poema até o fim, mas sei que não está concluído, que aquela não é sua forma definitiva. Quando escrevo, preciso estar em um estado especial - não se trata de uma inspiração divina, mas também não é meu estado normal (risos). Nessa condição, o poema nasce, mas percebo que não é aquilo que realmente vai ficar, não é aquilo que quero dizer. Como sou forçado pelo impulso, o texto sai com um formato a ser modificado. Recentemente, aconteceu exatamente isso. Escrevi um poema à mão até chegar ao ponto que parecia ser o fim. Deixei-o de molho e fui cuidar da vida. Passado um tempo e já liberto daquele estado inicial, voltei a lê-lo com mais lucidez e visão crítica. Acrescentei mais alguns detalhes e agora acredito que esteja pronto. Mas ainda está sob judice (risos). Você disse que escreveu à mão: isso influi no estilo, no resultado? A escrita é também aquilo com que se escreve? Os meus poemas, em geral, são escritos à mão. É uma forma de ter mais intimidade com o texto. É uma relação diferente, mais íntima diante da página em branco. Eu me sinto mais perto de mim mesmo. Quando transcrevo no computador, é uma forma de visualizar o poema. Nesse estágio, eu sei que ele está quase pronto - em geral, é a primeira versão que faço à mão, é o nascimento dele. Aí, já sei que será um poema, faltando apenas alguns ajustes. Então passo para o computador, no qual trabalho até a finalização. Para mexer em um poema, qual deve ser a sua condição? Em geral, não pode ser muito diferente daquela do nascimento do poema. Tive poemas prontos em sua primeira versão que não me despertavam vontade de voltar a trabalhá-los. Sei que não estou em condições de mexer no material. É preciso estar nesse estado especial, pois você se sente mais solto, mais descompromissado com a racionalidade, mais aberto à invenção. Nesses momentos, a solidão é fundamental? Normalmente, sim. Mas acontece também de eu começar a escrever um poema e precisar sair de casa antes de finalizá-lo. É um sensação muito especial para mim: estar no meio das pessoas enquanto elaboro o poema. Com o Poema Sujo, foi algo muito forte. Levei meses para terminar o trabalho - como morava sozinho, eu precisava ir ao supermercado, ao correio, mas não deixava de trabalhar mentalmente! Ou seja, as pessoas ao meu redor pagavam por suas compras, acenavam para um táxi e não sabiam que eu criava um poema! De uma certa forma, era uma experiência muito solitária. Você acredita que a pessoa se torna mais lúcida, mais criativa, mais capaz, se tem uma obsessão? Não sei dizer qual é o sentido de obsessão. Ter um propósito determinado não torna ninguém mais lúcido. Estar comprometido com uma ideia política, por exemplo, e utilizar a literatura como instrumento para modificar a sociedade pode não ser uma atitude de alguém lúcido. A pior coisa é ser dono da verdade. Não questionar os próprios valores e certezas é perigoso. E não se pode também relativizar as coisas. Eu, por exemplo, me questiono se poesia é literatura. Como assim? Vem do fato de eu não ter controle sobre minha criação, sem normas preestabelecidas. É diferente. O romancista constrói uma trama elaborada, que exige um esboço; já o poeta vive do inesperado e até se surpreende com o que escreve. E o que você acha do lançamento em livro de seus poemas de cordel? Quando foi lançado o Toda Poesia, recomendei à minha editora que lançasse os livros separadamente. Foi assim com Poema Sujo, Barulho, entre outros, e agora chegou a vez dos poemas do cordel. Eu não tinha pensado nisso, pois foi um trabalho com um propósito mais político que literário. Escrevi durante meu período de militância política, com o propósito ideológico de levar conscientização às pessoas. Na época, eu estava no CPC da UNE e o primeiro poema, Cabra Marcado para Morrer, foi encomendado pelo Vianinha para servir como roteiro de narração para uma peça que ele pretendia escrever. Seu projeto não saiu do papel, mas o poema foi publicado. Escrevi outro sobre favelados e até fiz um de gozação sobre uma peleja na viola entre um caçador nordestino, Zé Moléstia, e Tio Sam, que acontece na sede ONU. Uma loucura. Por último, outro encomendado - era a história de um valente, escrito para ajudar a campanha de libertação do Gregório Bezerra. Foram, enfim, trabalhos circunstanciais para atender ao momento político. Eu nunca tinha pensado em publicá-los separadamente, até ser procurado por um professor universitário, que me cobrou esse livro. Segundo ele, a poesia de cordel já é muito estudada nas universidades. Acabei cedendo e logo teremos mais um livro inesperado. Poemas do Livro Inédito O meu gato na cadeira se coça corto papéis na sala a manhã clara canta na janela estou eterno (Flagrante) É alta madrugada. A culpa joga dama comigo no entressono. Cismo que ela me engana mas não bispo o seu logro. Ganho? Perco? Blefo? Afinal, qual de nós rouba no jogo? (Insônia) Em algum lugar esplende uma corola de cor vermelho queimado metálica Não está em nenhum jardim em nenhum jarro da sala ou na janela Não cheira não atrai abelhas não murchará apenas fulge em alguma parte da vida (Uma Corola) EDITORA JÁ COMEÇA A PLANEJAR COMEMORAÇÃO DOS 80 ANOS DO POETA EVENTOS: Além do lançamento do livro Em Alguma Parte Alguma, previsto para o primeiro semestre deste ano, a editora José Olympio planeja ainda reunir os poemas de cordel escritos por Ferreira Gullar. São poemas criados com intenção política. Gullar confessa que não pensava em publicá-los em livro, mas, com o lançamento do volume Obra Completa (Nova Aguilar), do qual os poemas de cordel não fazem parte, a edição em um livro separado surgiu como boa solução. Os versos são ilustrados pelas belas xilogravuras do artista paraibano Ciro Fernandes (na foto, a figura de Tio Sam), que trabalhou também nas publicações de outros autores, como Ana Maria Machado e Rachel de Queiroz. A edição, curiosamente, só foi aceita pelo poeta porque o material desse livro não figura no volume Poesia Completa, Teatro e Poesia, recentemente lançado pela Nova Aguilar e que traz quase a totalidade de sua obra em pouco mais de mil páginas. Como Gullar confirma na entrevista nesta página, a poesia de cordel não passou de um mecanismo utilizado por ele para defender seus ideais políticos, especialmente os exigidos por partidos com tendências comunistas. No ano que vem, mais especificamente no dia 10 de setembro, Ferreira Gullar completa 80 anos. Entre a série de atividades que vêm sendo planejadas para comemorar a data, o destaque será o lançamento do ABC de Ferreira Gullar, uma coleção que vai divulgar a vida e a obra do poeta. A José Olympio vai firmar também parceria com uma produtora para promover eventos comemorativos, como exposição, palestras, debates, etc.

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