A pequena estátua

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Por Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Há algo de infantil (lúdico) no reino dos estúdios de tevê. Entramos envergonhados num mundo de faz-de-conta, em que atores fingem que são o que não são. Desvendamos segredos trancados a sete chaves, enquanto a grande massa continua acreditando nas ilusões e efeitos da telinha e confunde o real com o imaginário. Ela vive num sonho dopada pela mágica. Há algo de platônico no reino dos cenários, ruas e calçadas de mentirinha, casas de madeira que, na verdade, são vazias, sem móveis e utensílios; fachadas apenas, apoiadas por estacas, voltadas para a luz, câmera e ação. Há onipotência na descoberta de que a mentira é a base da arte, e o artista é como um mágico, cujo fundamento é a ilusão. E nos sentimos acanhados ao descobrirmos que eles nos enganaram direitinho. Já trabalhei em tevê. Conheci estúdios de vários tipos e gêneros. Apresentei um programa na TV Cultura em cujo estúdio vizinho gravavam Castelo Rá-Tim-Bum, versão Cao Hamburger (a mais bem produzida de todas). Muitas vezes, eu fugia dos produtores e me escondia no estúdio vazio e escuro do Castelo, com aquela árvore gigante de mentira no meio. No silêncio, eu dormia, torcendo para acordar um personagem de ficção. O camarão de empada das minhas férias: depois de almoçar em Itanhangá, Rio de Janeiro, na casa do ator, produtor e diretor Paulo Betti, que fabricou a minha primeira ilusão - dirigiu a versão de Feliz Ano Velho para o teatro, a invenção de outro eu, Marcelo Paiva, na pele do ator Marcos Frota, experiência que, confesso, deixa qualquer um confuso, projeto que acompanhei da coxia - e produziu outras três mentiras minhas, as peças E Aí, Comeu?, Mais-Que-Imperfeito e Closet Show, recebi após a sobremesa o convite inesperado para conhecer o Projac, já que ele teria de gravar uma cena da novela Sete Pecados. Foi como se tivessem me oferecido uma droga digestiva, um pó de pir-lin-pin-pin; a pílula mágica para a viagem a outra percepção. A Rede Globo perde audiência (13% em 2007, segundo Ibope). Perde o monopólio. Mas mantém o carisma. É responsável pela formação de gerações. Criança, eu via as suas novelas com minhas quatro irmãs e representava os papéis românticos na sala com a caçula, repetia as falas de Janete Clair com entonação de Francisco Cuoco, Sérgio Cardoso, Jardel Filho. A minha primeira paixão foi (é?) uma funcionária da Globo: Elisângela, assistente do Capitão Asa, programa infantil dos anos 60, gravado nos estúdios do Jardim Botânico, ou melhor, no terraço da emissora. Depois de infernizar a minha mãe para me levar, participei de um programa. Me colocaram numa bancada com outras crianças. Todos rodeávamos a musa Elisângela - morena mignon, cabelos lisos pretos, rosto até hoje meigo, teen. Enquanto as crianças acenavam para irmãos e amiguinhos, eu não tirava os olhos da musa. Juro que uma criança de 7 anos pode amar, sim, mais do que qualquer outra coisa. Amei Elisângela até ver Sônia Braga mocinha contracenar com os monstros de pano de Vila Sésamo e ensinar a contar: ''''Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nooooove, deeeeeez!'''' Será que elas estariam no Projac? Ainda ensinam a contar na tevê? Eu só pensava em cruzar com Elisângela, Sônia Braga, Regina Duarte, Débora Duarte, Francisco Cuoco, Tarcísio Meira, maquiados, vestidos como seus personagens, cercados por colaboradores, assistentes, reverenciados pelos técnicos da emissora. Lembrei-me da igreja de Irmãos Coragem, do estaleiro de Selva de Pedras, do hall em que morreu a nefasta Odete Roitman. Imaginei como seria trabalhoso cruzar as guaritas da emissora, com seguranças que impedem o fã de entrar e a fantasia fugir. Paulo Betti havia dado apenas um telefonema. E, para a minha surpresa, entrei sem ser revistado e ainda parei na melhor vaga. Fui recepcionado pela estátua do antigo inimigo da minha juventude, um dos homens mais odiados pela esquerda brasileira, no tempo em que se gritava ''''o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!'''', do ''''fantoche da ditadura'''', como dizia Leonel Brizola, do manipulador de notícias, jornalista dr. Roberto Marinho. Uma estátua pequena, de bronze, em que o midas segura uma claquete e sorri inocentemente. Uma estátua pequena demais. Do tamanho de uma criança. Por que tão pequena? Nota-se que tentaram corrigir a gafe e colocaram pedras em baixo da estátua. Mas ela continua pequena, diante do império que construiu, que começou de forma ilegal, em 1965, durante a ditadura, financiado pelo grupo Time-Life, violando a legislação brasileira que impedia a participação estrangeira no setor de comunicações. Por mais que muitos odiassem dr. Roberto, ele criou uma teledramaturgia sem sotaque mexicano, não foi seduzido pelo mondo cane de audiência barata, empregou Nelson Rodrigues e Elisângela. Se politicamente a sua herança é negativa (ignorou a luta contra a ditadura, as greves do ABC, acobertou o Caso Riocentro, ausentou-se no início das Diretas Já, sem contar o escândalo da contagem de votos Proconsult e a polêmica edição do debate entre Collor e Lula), como empresário merecia uma estátua maior. Pobre jornalista dr. Roberto Marinho. Qual foi a primeira estrela que vi? Gianecchini. Que passou por mim, colocou a mão no meu ombro e desejou Feliz 2008. Reynaldo Gianecchini? Cadê Tarcísio? Nada. Nem Cuoco. Vi Gabriela Duarte na praça de alimentação. Vi um ator cabeludo de Malhação na fila do Bob''''s. Eu sabia que era um ator cabeludo de Malhação, pois o programa passava na tevê pendurada na parede, no mesmo instante em que o ator pedia um milk-shake de Ovomaltine. Não vi Elisângela. Vi Eliana Fonseca, atriz e cineasta, minha colega de faculdade (ECA-USP). De quem tenho uma foto hilária pendurada na parede, mandando de pijama beijinhos para a câmera. ''''Eu não sabia que você estava na Globo, vou dar mais destaque àquela foto agora'''', eu disse. Ela riu. Sabia da foto. Não sei se sabia que ela já estava em destaque na parede da sala. Gianecchini, a nova cara da tevê brasileira: ex-modelo que não veio de escolas de teatro, que está em muitas propagandas e outdoors, eficiente, batalhador e cool. Perdeu-se a técnica de representar. Mas ganhamos em estética. A era da HDTV. Semana que vem tem mais.

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