A Nossa Vendeia II

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Por Redação
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Sob este título, há tempos, ao chegar a notícia de lamentável desastre, descrevemos palidamente a região onde nesta hora, com extraordinário devotamento, batem-se as forças republicanas. Leia a íntegra do texto Adotemo-lo de novo. Infelizmente prevíamos os perigos futuros e aquela aproximação histórica, então apenas esboçada, acentua-se definitivamente. A situação não pôde, entretanto, surpreender a ninguém. Os tropeços que se antolham às forças da República, a morosidade das operações de guerra e os combates mortíferos realizados, surgem naturalmente das próprias condições da luta, como um corolário inevitável. O nosso otimismo impenitente, porém, que preestabelecera às marchas das colunas do general Arthur Oscar, a celeridade e o destino feliz das legiões de César, mal sofreia uma nova desilusão e caracteriza como um insucesso, como um prenúncio inequívoco de derrota, o que nada mais é do que um progredir lento para a vitória. Esquecemo-nos de exemplos modernos eloquentíssimos. A Inglaterra enfrentando os zulus e os afegãos, a França em Madagascar e a Itália recentemente, às arrancadas com os abissínios, patenteiam-nos entretanto revezes notáveis de exércitos regulares aguerridos e bravos e subordinados a uma disciplina incoercível, ante os guerrilheiros inexpertos e atrevidos, assaltando-os em tumulto, desordenadamente e desaparecendo, intangíveis quase, num dédalo impenetrável de emboscadas. A profunda estratégia europeia naquelas paragens desconhecidas é abalada por uma tática rudimentar pior do que a tática russa do deserto. De fato, nada pode perturbar com maior intensidade o mais seguro plano de campanha do que esse sistema de guerra que sem exagero de frase se pode denominar - a tática da fuga - na qual, adaptadas de um modo singular ao terreno e invisíveis como misteriosas falanges de duendes, as forças antagonistas irrompem inopinadamente de todas as quebradas. (...) Ora, quem observa, esclarecido embora por escassas informações, a disposição topográfica desse trecho dos sertões da Bahia, para o qual se dirige agora toda a atenção do nosso país, reconhece de pronto, que ele se presta de modo notável à guerra de recursos com todo o seu cortejo de revezes. (...) Prolongando-se para o Norte, ao atingir o morro da Favela, eixo das operações do nosso exército, os grandes acidentes de terreno derivam para leste e depois para o norte e subsequentemente para noroeste, como que estabelecendo em torno de Canudos um círculo de cumeadas, cortado pelo Vaza-Barris em Cocorobó. A marcha do exército republicano opera-se nesse labirinto de montanhas. (...) Por outro lado, na quadra atual, sob o influxo das chuvas, revestem-se os amplos tabuleiros, as encostas das serras e o fundo dos vales, de uma vegetação exuberante e forte, vegetação intensamente tropical, cerrados extensos impenetráveis, em cujo seio a trama inextrincável das lianas se alia aos acúleos longos e dilacerantes dos cactos agrestes. Vestido de couro curtido, das alparcatas sólidas ao desgracioso chapéu de abas largas e afeiçoado aos arriscados lances da vida pastoril, o jagunço traiçoeiro e ousado, rompe-os, atravessa-os, entretanto, em todos os sentidos, facilmente. (...) Não há como persegui-lo no seio de uma natureza que o criou à sua imagem - bárbaro, impetuoso, abrupto. (...) O jagunço é uma tradução justalinear quase do iluminado da Idade Média. O mesmo desprendimento pela vida e a mesma indiferença pela morte, dão-lhe o mesmo heroísmo mórbido e inconsciente de hipnotizado e impulsivo. Uma sobriedade extraordinária garante-lhe a existência no meio das maiores misérias. Por outro lado, as próprias armas inferiores que usam, na maioria, constituem um recurso extraordinário: não lhes falta nunca a munição para os bacamartes grosseiros ou para as rudes espingardas de pederneira. A natureza que lhes alevantou trincheiras na movimentação irregular do solo - estranhos baluartes para cuja expugnação Vauban não traçou regras - fornece-lhes ainda a carga para as armas: as cavernas numerosas que se abrem nas camadas calcárias dão-lhes o salitre para a composição da pólvora e os leitos dos córregos, lastrados de grãos de quartzo duríssimos e rolados, são depósitos inexauríveis de balas. A marcha do exército nacional, a partir de Jeremoabo e Monte Santo até Canudos, já constitui por isto um fato proeminente na nossa história militar. É uma página vibrante de abnegação e heroísmo. (...) A viagem recente de Canudos a Monte Santo das forças sob o comando do coronel Medeiros é um exemplo frisante. Toda a campanha ficou em função daquela força expedicionária; a sorte de um exército ficou entregue a uma brigada diminuta. Entretanto, tal não sucederia se a linha de operações tivesse como pontos determinantes duas ou três posições estratégicas, onde forças em número relativamente diminuto se firmem, auxiliando eficazmente as comunicações entre a base de operações e o exército. As forças auxiliares que partem hoje do Rio de Janeiro irão, certo, iniciar estas medidas urgentes, corrigindo uma situação anormalíssima. Não basta garantir Monte Santo - é indispensável ligá-lo o mais estreitamente possível ao exército, cujo eixo de operações alevanta-se neste momento, em frente de Canudos. (...) Tomadas estas providências, a campanha que pode terminar amanhã repentinamente por um golpe de audácia, mas que pode também prolongar-se ainda, será inevitavelmente coroada de sucesso.(...) As tropas da República seguem lentamente, mas com segurança, para a vitória. Fora um absurdo exigir-lhes mais presteza. (...) - Euclides da Cunha. Nota da Redação: A grafia deste texto foi atualizada segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico. Foram preservadas, no entanto, a pontuação e as construções sintáticas originais do autor, a fim de não alterar seu estilo

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