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A normalidade

Por Verissimo
Atualização:

O Valtão era o que se costuma chamar de "solteirão", uma condição que sua irmã Valkíria não aceitava. - Você precisa se casar, Valtão. - Por quê? - Porque não fica bem um homem da sua idade solteiro. O Valtão tinha quase 50 anos. Entre as muitas coisas que Valkíria achava que não ficavam bem, um homem de quase 50 anos ainda solteiro era das que ficavam piores. - Mas eu estou satisfeito assim, Val. - Eu sei. Mas não é, não é... - O que, Val? - Normal. Valkíria era casada. Com o Pereirinha que, diziam, tinha uma noiva em cada bairro da cidade e gastava uma fortuna só em transporte. Valkíria era normal. Valtão não era. Valtão precisava se casar para normalizar sua vida. Para contentar sua irmã. E para ficar bem. - Vou te apresentar uma pessoa - anunciou Valkíria, um dia. - Vocês vão se dar muito bem. Têm muitas coisas em comum. - O que, por exemplo? - Ela também gosta de cinema. Eu acho. E teatro. Adora teatro. - Eu não gosto de teatro. - Não sei se ela gosta de teatro, mas é uma pessoa interessantíssima. Tem renda própria e não é feia. Quer saber o nome dela? - Não. - Verônica. Não é bonito? Verônica. Vocês vão se dar muito bem. - Por que você acha isso, Val? - Porque numa coisa vocês são iguais. No que interessa. Ela também é solteirona. Para Valkíria, mulher com quase 50 e ainda solteira também era uma aberração. Se conseguisse que o irmão e a amiga se casassem, estaria acabando com duas aberrações, por assim dizer, com uma cajadada só. E trazendo os dois para a normalidade. O que os dois tinham mesmo em comum era que Verônica também estava cansada das pressões para se casar que sofria de amigos como a Valkíria e da família. No primeiro encontro, concordaram. Se casariam. Sem namoro, sem noivado, sem se conhecerem bem e sem demora. Desde que algumas coisas ficassem acertadas. - Eu leio jornal na cama e durmo só de camiseta. - Antes de tomar uma xícara de café de manhã, não falo com ninguém. Só rosno. - Tenho horror de sol, de miúdos, de cheiro de incenso e de pagode. - Você raspa a manteiga ou tira pedaço? - Tiro pedaço. Você? - Raspo. E enrolo o tubo de pasta de dente. - Eu não enrolo, mas não tenho preconceito. - Uma coisa: o controle remoto da televisão fica comigo. - A não ser quando tiver futebol. - Combinado. Casaram-se, numa cerimônia simples na casa da Valkíria, que estava radiante. E, é claro, divorciaram-se pouco tempo depois da lua-de-mel em Porto Seguro. Valtão não sabia como contar para a irmã do divórcio. Simplesmente não dera certo. Os dois tinham hábitos de solteirões muito arraigados. Tinham tentado, mas... Valkíria compreenderia. E, para sua surpresa, Valkíria compreendeu. Hoje em dia é normal ser divorciado, disse ela. A maioria das suas amigas era de divorciadas. Ela mesma só não era divorciada porque o Pereirinha dizia que acreditava demais na santidade do casamento e não aceitava. ''Valkíria insistia com o irmão Valtão que não ficava bem um homem de quase 50 anos ainda estar solteiro'' ''Se conseguisse que o irmão e a amiga solteirona se casassem, estaria acabando com duas aberrações''

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