A memória, essa ferida que não fecha

Na fantasmagoria confessional de um velho moribundo, Chico retraça um século de vida brasileira, num livro substantivo

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Por Samuel Titan Jr.
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Deitado numa cama de enfermaria, sofrendo com escaras e tomografias, Eulálio d?Assumpção pede à enfermeira de todas as noites que vá até a cômoda ou quem sabe à cabeceira da mãe, morta há muito tempo, e procure um livrinho que contém "uma sequência de fotos quase idênticas, que em olhada ligeira dão a ilusão de movimento, feito cinema". O "livrete" é de fins do século 19, de depois da queda do Império, e as fotos retratam o avô do narrador em seu exílio londrino. Em criança, Eulálio "gostava de folhear as fotos de trás para diante, para fazer o velho dar marcha à ré". Agora é com essa "gente antiquada" que ele sonha, quando a enfermeira o põe para dormir à base de morfina. Esse livrinho, objeto ele mesmo antiquado, é uma das boas portas de entrada que o herói e narrador de Leite Derramado oferece aos leitores do novo romance de Chico Buarque - aos leitores ou, melhor dizendo, aos ouvintes, já que essas memórias não são escritas, mas proferidas em voz alta na enfermaria do tal hospital de convênio, para irritação dos demais pacientes e na esperança de que a enfermeira noturna as anote. À maneira do tal livrinho de fotos do século 19, também o romance do 21 é uma fieira de imagens "quase idênticas" de fragmentos da vida do narrador, aos quais este retorna com mão trêmula, mas sem cessar, ora em sequência linear, ora em "marcha a ré". A cada novo capítulo, um novo detalhe, às vezes mínimo, uma suspeita ou uma revelação parcial vem se acrescentar à busca infinita que dá ímpeto ao romance. Nesse vaivém, a narrativa de Eulálio percorre um século de vida erótica, familiar e nacional. Rebento único de um figurão da Primeira República, o rapaz de outrora vive à larga, viaja de vapor e frequenta cocotes francesas no Ritz de Paris enquanto duram os bons preços do café e as boas conexões do pai senador. Quando uns e outras vão por água abaixo, na virada dos anos de 1930, o filho tem de se haver com horizontes sempre mais sombrios. Começa então um trem de desgraças financeiras que levarão à miséria mais crassa o próprio Eulálio, a filha Maria Eulália e três gerações sucessivas de Eulálios - aliás, primos brasileiros dos muitos Aurelianos que povoam Cem Anos de Solidão e, como aqueles, extintos por obra de uma união consanguínea. Mas toda essa desgraça seria o de menos, não fosse Matilde, a figura decisiva e fatídica da vida de Eulálio, que ele conhece na missa fúnebre do pai. A moça - que jamais chegará a ser mulher, ao menos não para o leitor de Leite Derramado - é uma das filhas de um aliado político do senador Assumpção. Por sinal a mais amorenada das moças, fato grave a que o rapaz não atenta, apesar do alarme que a mãe faz soar com todo desdém quando lhe pergunta "se por acaso a menina não tinha cheiro de corpo". Armam-se assim, de um só golpe, os encontros e desencontros do jovem casal, que se duplicam na alma do narrador numa mistura de ímpeto passional e instinto de propriedade. Vertendo esse tumulto na forma de ciúme, Eulálio protagoniza algumas das cenas mais violentas do romance, e só retrospectivamente, já velhote, ele poderá se sair dizendo que "o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem", um sentimento "cortês", que "deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo mal fermenta". Resumido assim, poderia parecer que estamos diante de um romance histórico, temperado aqui e ali por algum elemento cômico ou contemporâneo. Se fosse assim, este seria um livro menor. Mas Leite Derramado é um livro maior, em que Chico Buarque dá um passo além de Budapeste e alcança na ficção a mesma potência vernácula e imaginativa de suas melhores canções. E, se o consegue, é por obra de uma dupla invenção. Em primeiro lugar, de um enredo que entrelaça em profundidade, na melhor tradição do romance realista francês do século 19, o rumo da história pública e o curso da história erótica dos protagonistas. Com efeito, o senador Assumpção podia exercer a "insaciedade" de seu desejo sem nenhuma peia financeira ou propriamente amorosa. Seu filho Eulálio, logo às voltas com a bancarrota, sentirá em si um desejo de vulto igual, "por todas as fêmeas do mundo", mas agora "concentrado numa só mulher" e numa mulher que, por tudo, está nos antípodas do universo de classe dos Assumpção. Em Leite Derramado, posse amorosa e propriedade privada comunicam-se de modo secreto e surpreendente: uma imanta a outra, e a falha de uma ecoa ou prepara a falência da outra. Mas é também decisivo que Chico Buarque não nos convide a essas intuições por via dissertativa, analítica, e sim por força de uma segunda invenção - a invenção de uma voz narrativa singular. Já Budapeste destacava-se dos dois romances anteriores pela firmeza madura com que o autor, adotada a impostação de voz do impostor José Costa, mantinha-a sem quebras da primeira à última página do livro. Com o Eulálio de Leite Derramado, o autor chega a uma espécie de virtuosismo ventríloquo para narrar com uma voz que decididamente não é a sua. Paixão e preconceito, desejo e desdém, saudade e cegueira misturam-se nas propostas de casamento que o narrador faz à "enfermeirinha" noturna, que lhe parece "digna apesar da origem humilde"; na maldade com que, já tomado pelo ciúme, Eulálio anota o francês rudimentar de Matilde; ou no gosto malévolo com que conta a história do avô que, a pedido de um negro liberto, açoitava-o "mais pelo estalo que pelo suplício". Ocorre que, posta para funcionar, para expor um século de história, essa voz não pode deixar de expor a si mesma aos olhos do leitor. Se nos cativa por algum tempo, a voz de Eulálio não tem como não soar, em seu exagero paródico, como o que afinal de fato é: a voz do dono ou a voz de quem gostaria de ser dono da memória (que porém é uma "vasta ferida"), do nome ("Assumpção, e não Assunção") e da mulher (que entretanto ele é incapaz de deter). A essa altura, não terá escapado ao leitor de Machado de Assis a semelhança com a situação romanesca e o modo narrativo de Dom Casmurro. Tanto Bentinho como Eulálio escrevem no afã de "atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência", como se diz bem ao início do livro de 1900. O narrador de Machado chegara ao extremo de tentar reconstruir, no Engenho Novo, a casa da infância em Matacavalos; fracassando no experimento, lança-se com sanha a um segundo, reunindo os autos do processo romanesco de que, a seu ver, Capitu sai condenada sem apelação. Em Leite Derramado, contudo, esse mesmo ímpeto não tem como se completar, seja porque Eulálio é marido mais "frouxo" que Bentinho, seja porque, despejado e morando de favor num subúrbio carioca deste século, o narrador de Chico Buarque já não tem como fechar o cerco e nos convencer do que quer que seja. É assim que vai se produzindo, no coração do romance, um vazio, o vazio do desejo que não se cumpre, das coisas que não se discernem e das histórias que não se completam. Matilde morreu e, se morreu, do quê? Terá fugido e, se sim, com quem? E o Brasil, como tomou o rumo que tomou, se é que tomou rumo? Por falta de resposta, o amor e a história vão aos poucos assumindo o ar de uma fantasmagoria terrível, insolúvel, mas também cotidiana, familiar, que o leitor não tarda a reconhecer como parte da própria experiência da vida contemporânea. Ao trazer esse vazio vivido, esse "sonho coletivo" para o interior da narrativa, Chico Buarque escreveu um romance poderoso sobre o amor e a posse, a memória e a história. Samuel Titan Jr. é tradutor e professor de literatura comparada da USP

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