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A mãe de Houellebecq contra-ataca

Lucie Ceccaldi lança livro chamando o filho de ''bastardinho estúpido'', diz que não o abandonou e exige que peça desculpas

Por Angelique Chrisafis , The Guardian e Paris
Atualização:

Michel Houellebecq, o romancista mais chocante da França, fez fama com histórias de relacionamentos disfuncionais. Agora, sua mãe, retratada como hippie obcecada por sexo em um de seus livros, lançou um contra-ataque devastador num livro de memórias. Aqui, Lucie Ceccaldi dá sua primeira entrevista britânica: no canto de uma cantina cingalesa no norte de Paris, está sentada uma hippie de 83 anos com os cabelos penteados em tranças carmim. Ela pode parecer uma velhinha inofensiva, mas a França está ruminando se essa pensionista venenosa não será a pior mãe de celebridade que já conheceu. O filho de Lucie é Michel Houellebecq, autor contemporâneo mais bem-sucedido da França, enfant terrible premiado e já na meia-idade, cujos romances niilistas lhe valeram status de gênio. A aversão dele por sua ''velha puta mãe'' vai muito além. Quando Lucie o abandonou ainda bebê com os avós para viajar pela África com o marido, a rejeição moldou toda a sua obra. No best-seller Partículas Elementares (Ed. Sulina), criou uma das mães mais abomináveis da literatura francesa, uma hippie egoísta chamada Ceccaldi, que larga o filho pequeno num sótão em meio a suas fezes e depois se livra dele para desfrutar uma vida de amor livre num culto bizarro. Em outra parte, ele descreve a ''deficiência psíquica fundamental'' que a mãe lhe causou. Ambos não se falam há 17 anos. Certa vez, ele disse a um entrevistador que ela havia morrido. Mas agora Lucie surgiu de sua cabana à beira-mar na ilha francesa de Reunião, no Oceano Índico, e está lançando suas memórias em resposta. Ela chama o filho de ''bastardinho estúpido e perverso'', acrescentando que ''esse indivíduo, que, ai de mim, saiu de meu ventre, é mentiroso, impostor, parasita e, sobretudo... sobretudo... um pequeno arrivista pronto a fazer qualquer coisa por dinheiro e fama.'' É o bate-boca literário da década na França. Mas, à medida que Lucie circula por Paris injuriando o filho famoso, o que no início extasiou o mundo literário está se tornando cada vez mais penoso de assistir. Enfurecida com Partículas Elementares, ela diz: ''Se ele tiver a infelicidade de usar meu nome em alguma coisa de novo, vou lhe dar uma bengalada na cara que vai lhe arrancar os dentes, com certeza. E (seus editores) não me impedirão.'' Ela fala sobre como voou para Paris em 1998 depois de ler o livro e queria arrebentar os editores do filho e depois arrebentar a cara dele. Houellebecq prometeu ficar em silêncio. Mas, até mesmo os detratores de sua escrita dura e amarga estão começando a ter pena dele. Teóricos literários saúdam o precioso insight psicológico da voz maior de uma geração, mas Houellebecq advertiu, há dois anos, que sua mãe era ''egocêntrica demais para produzir um relato significativo de algo que não fosse ela mesma''. Encontrei Lucie enquanto ela almoçava antes de ela ir a uma rádio de rock e um programa em horário nobre da TV. À primeira menção do nome de Houellebecq, ela revira os olhos delineados, dizendo que está cheia dele e só quer falar dela mesma. Sente que não está recebendo suficiente atenção e bate o pé embaixo da mesa. ''ão escrevi sobre ele, escrevi sobre mim! Não! P...! Eu digo não!'', ela troveja. Ela me chama de maníaca obcecada por seu filho. ''Se eu não fosse a mãe de Houellebecq, teria escrito o mesmo livro. Tudo que vocês podem reprovar em mim é eu não ter dado suficiente importância a meu filho, mas é assim que é.'' Depois, ela se recosta e sorri docemente para o polido pessoal do restaurante. O título de suas memórias, L''Innocente (A Inocente), resume sua posição. Lucie nasceu na Argélia de pais franceses em 1926. Estudou medicina e se envolveu com o comunismo e a luta anticolonial. Mudou-se para Reunião com o marido francês que era guia montanhês e deu à luz Michel Thomas aos 30 anos. Antes da gravidez, porém, o casal havia planejado uma viagem por toda a África e enviaram o bebê de avião em seu ''moisés acolchoado'' para ser criado, no início, pelos avós maternos. Depois, aos 5 anos, foi para a França onde a avó paterna o criou. Seus pais se divorciaram e a mãe permaneceu na Reunião. O escritor, depois, disse que adotou o nome de solteira da avó, Houellebecq, em reconhecimento por ela ser a única pessoa que lhe tivera algum amor. ''Depois que a senhora abandonou seu filho...'' comecei perguntando. ''P..., você não entende nada? Nunca abandonei ninguém. Meu filho é meu filho. Foi mais ele quem me deixou. Eu tinha um relacionamento com ele até ele decidir que havia sido abandonado. Eu o via todos os anos. Ele estava com minha sogra... O problema com garotos criados por pessoas que não são seus pais...'' e ela vai emudecendo. Durante 12 anos, nos anos 60 e 70, ela diz que trabalhou 14 horas por dia, seis dias por semana ''e não pelo dinheiro, mas porque era uma médica, eu era meu trabalho. E não se pode fazer seu trabalho nessas condições enquanto se cuida de uma criança''. Ela rola os olhos. ''Talvez eu o devesse ter mandado a um internato inglês, aí ele aprenderia a montar cavalos e se tornaria um cavalheiro e todo o mundo me elogiaria.'' Após crescer no subúrbio francês, Houellebecq tornou-se funcionário público. Seu aclamado primeiro livro, Extensão do Domínio da Luta (Ed. Sulina), sobre a banalidade da vida do homem comum moderno, foi publicado em 1994 e lhe rendeu um público fiel. Lucie diz que viu o filho pela última vez em 1991, antes de ficar famoso, quando tomaram chá num bistrô na Rive Gauche em Paris. Conta que estavam conversando sobre a guerra do Golfo quando ele enveredou por uma diatribe contra os árabes só para irritá-la. Ele saiu intempestivamente e nunca mais se falaram. ''Ele disse que a culpa da guerra era o Islã ser uma religião de bastardos estúpidos. Eu disse: ''Não, você é o bastardo estúpido.'''' Mais tarde, ele descreveu que teve uma sensação de paz, liberdade e luz quando soube que jamais a veria de novo. (Anos depois, ele foi inocentado de incitação ao ódio religioso após fazer comentários parecidos sobre o Islã numa revista.) Lucie diz que em 1992 recebeu uma inesperada carta dele, que ela cita no livro: ''Antes de morrer, você tem alguns anos para tentar compensar suas más ações: dê uns telefonemas insistindo para todo mundo que eles devem apoiar meus projetos de cinema. Envie-me uma quantia de dinheiro que me sustente por três anos...'' ''Ha!'', diz ela. ''Ele queria dinheiro que lhe permitisse criar sua obra! Isso me fez rir. Ele tinha 34 anos e eu, eu ganho a minha vida desde os 17.'' A senhora respondeu? ''Não, porque ele escreveu que qualquer carta que eu enviasse sem um cheque em anexo seria jogada no lixo.'' Em 1998, quando Houellebecq estava no auge da fama, ela diz que tropeçou num artigo sobre ele receber um prêmio literário por Partículas Elementares. Foi a uma livraria, comprou o livro e ficou furiosa. ''Eu disse, ''P., não é verdade.'' Ele me descreve como uma puta, mantida por não sei qual americano. Isso é calúnia. Toda minha vida batalhei para ganhar dinheiro para outras pessoas. Quero que ele peça desculpas. Se eu fosse do tipo de processar, teria processado ele e ganhado.'' Ela escreve no posfácio de suas memórias que só falará com ele de novo ''no dia em que ele sair em praça pública com Partículas Elementares na mão e disser: ''Sou um mentiroso, sou um impostor, nunca fiz nada na vida exceto ser mau para as pessoas que me cercam, e peço perdão.'''' Se ela acha que ele se desculpará? ''Claro que não, ele é orgulhoso demais. E, também, é famoso. Se pedisse desculpas, suas vendas desapareceriam.'' Ela não valoriza o talento literário do filho. ''Que história é essa de um velho químico que quer saber se sua secretária está se masturbando?'', pergunta. ''Se não fosse meu filho, não leria esse tipo de lixo, eu o jogaria fora, porque se tem coisa que detesto no mundo é a pornografia. Esse livro é pura pornografia, é repugnante, é lixo. Não entendo esse sucesso todo, que só mostra a decadência da França.'' Em seu livro, ela especula que ele escreve sobre sexo porque não tem o suficiente. ''Que literatura estúpida é essa?! Houellebecq é alguém que nunca fez nada, nunca desejou nada, nunca quis olhar para os outros. E essa arrogância de se achar superior... Bastardinho estúpido. Sim, Houellebecq é um bastardinho estúpido, seja ele meu filho ou não.'' Se ela acredita em amor materno? ''Mulheres ocidentais me dão nos nervos com seu amor materno.'' Diz não conseguir suportar as mulheres ocidentais que cacarejam sobre como seus filhos são maravilhosos, preferindo o ''amor materno de mulheres africanas que carregam o filho nas costas'' e o criam com a tribo. Se ela gosta de seu filho? ''Claro, amo meu filho. Se ele morresse, ficaria ferida, mas não me lamentaria em jornais nem escreveria um livro sobre isso.'' Sobre os relacionamentos do filho com mulheres ela diz: ''Acima de tudo ele ama o dinheiro, e mulheres sempre o sustentaram. Primeiro eu, depois suas esposas. A segunda não conheci, nem as outras que vieram depois dela.'' Menciono que ele vive na Irlanda. ''Vive é? Se fosse menos estúpido, iria visitá-lo.'' O linguajar chulo e a prosa enfurecida de Lucie são tão vigorosos que parecem puro Houellebecq. No livro, ela se queixa da qualidade do cocô de seu bebê: ''Em vez da pequena gema de ovo que toda mãe cuidadosa espera, ele só conseguia largar, após uma gritaria, um cocozinho de cabra.'' Ela não dirá por que escreveu um livro de memórias sobre sua vida - ''Apenas me deu vontade.'' Mas, fica claro à medida que comparece a mais e mais programas de rádio e TV que toda essa empreitada pública é a sua maneira de tentar estender a mão a ele, de persuadi-lo a algum tipo de contato. Mas, ela insiste, não quer uma reação do filho. A essa altura, divido um táxi com ela e seu assessor de imprensa. Pergunta, esperançosa, e meio desesperada: ''Acha que ele sabe da minha aventura literária?'' O assessor diz com simpatia que ele talvez saiba, mas os editores disseram que ele não tem intenção de comentar. Eu me inclino e pergunto se ela lhe enviou o livro. ''Como poderia? Não sei o endereço dele'', ela rosna. Se ela quer que ele entre em contato? ''Nem um pouco. Meu principal interesse no momento é minha dor no quadril'', ela diz, e fica olhando fixamente em silêncio pela janela. TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK

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