A louca aventura da criação artística

Observar legado de Mario Cravo Neto, que morreu dia 9, é rever produção sublime, de rigor impecável, pautada pela liberdade

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Por Rubens Fernandes Junior
Atualização:

É sempre muito difícil escrever sobre a morte de um amigo querido. Mais ainda quando se trata de um artista da grandeza de Mario Cravo Neto, um dos mais importantes nomes da fotografia brasileira, presença constante no circuito cultural internacional nas últimas duas décadas. Por outro lado, é quase impossível falar de Mario Cravo Neto (1947-2009), que morreu no dia 9, sem compreender o seu universo criativo, sem aprofundar o olhar sobre seu trabalho, sem estabelecer relações, sem perceber sua emoção sincronizada com outros artistas e com outras linguagens. Para ele, família, povo, arte, cotidiano, cultura, religião, política e paixão eram um todo indissociável do pensar, do fazer e do viver. Cravo Neto tinha consciência da sua ação artística. Por inúmeras vezes, afirmou que o fato de conviver num ambiente em que se respirava arte (seu pai é o escultor Mario Cravo Junior) o fez compreender desde muito jovem que "o objetivo do artista é deter o movimento da vida e conservá-lo fixo, de modo que, cem anos depois, quando um estranho o fitar, ele se mova novamente, já que é vida. Como o homem é mortal, a única imortalidade possível para ele é deixar atrás de si algo que seja imortal, já que sempre se moverá." Sábias palavras para este momento em que rever algumas de suas imagens significa perceber uma força incomum, um instante de suspensão da carga dramática do gesto inconcluso, que se revitaliza a cada novo olhar. Sua formação artística inclui uma estada em Berlim em 1964, aos 17 anos, acompanhando seu pai numa residência artística, iniciando suas experiências com a escultura e a fotografia. Entre 1968 e 1970 residiu em Nova York e estudou na Art Student?s League, sob a orientação de Jack Krueger, um dos precursores da arte conceitual. E em 1971 participou como escultor da 11ª Bienal Internacional de São Paulo em sala especial. Também se envolve com cinema, dirigindo vários curtas-metragens e, em 1976, recebeu o Prêmio Nacional Coruja de Ouro, da Embrafilme, pela direção de fotografia do longa-metragem Ubirajara, dirigido por André Luis Oliveira. Conhecer essa sua aproximação com o cinema é fundamental para compreender suas incursões experimentais com o vídeo realizadas na última década. Mas seu aprendizado mais sério com a fotografia aconteceu com o alemão Hans Mann, amigo de Caribé, que frequentava o estúdio de seu pai. Foi com ele que aprendeu quase tudo de manejo técnico, iluminação, enquadramento, laboratório e, principalmente, rigor, organização e conforto para poder desenvolver sua produção. Foi com esse contato que aprendeu a ter cuidado excepcional com o seu trabalho e o tornou um exímio impressor de suas cópias. Poucos artistas no Brasil têm o rigor de Cravo Neto. Suas tiragens são perfeitas, assim como ele sempre foi impecável com o desenho das suas exposições e instalações, bem como o cuidado com os convites, com o design e a direção de arte dos livros e catálogos, e o acompanhamento de todos os detalhes do projeto. Isso demonstra uma prática incomum na fotografia brasileira. Mario, na maioria das vezes, trabalhava sozinho, dividindo com seus mestres que o acompanhavam a emoção e a sensação daquilo que ele denominava de "louca aventura da criação". Cada imagem, produzida cuidadosa e conscientemente, estabelece conexões com a grande família da arte. No seu caso, inclui, entre outros, Miles Davis, Jimi Hendrix, Ezra Pound, Pierre Verger, Marcel Duchamp. Aliás, de Duchamp ele incorporava "a arte é um meio de libertação, de contemplação ou de conhecimento. A arte não é uma categoria separada do viver. O fim da atividade artística não é a obra, mas a liberdade. A liberdade não é o saber, mas o que dele emana". O que Mario Cravo mais preservava era exatamente o seu compromisso com a liberdade, seu desprendimento com a matéria, sua sintonia e intimidade com as divindades do candomblé, sua disponibilidade com o acaso. Admirador das ideias de Carl Gustav Jung, Mario escreveu após ler suas memórias: "Ele nos leva a refletir sobre a realidade de nossas almas, as incertezas que nos aprisionam no universo da opressão da sociedade em que vivemos." Em sua crença, sempre defendeu a ideia na qual todo trabalho criativo, em qualquer linguagem, tem um fundo místico, ou seja, uma relação do homem com o desconhecido, com o imponderável, com o imprevisível. A criação nasce de um paradoxo: o de registrar o cotidiano, sublimá-lo através do domínio da técnica e da linguagem fotográficas, para colocá-lo acima da mera representação do real. Em sua fotografia, o resultado é um trabalho sutil e sublime. Primitivo e misterioso. Mario porém acreditava que a fotografia é especificamente realista: dialoga direto com o mundo exterior inserido na natureza da fotografia em si. Cabe ao artista evitar fazer uma arte puramente realista, e para isso é necessário acreditar no potencial da linguagem fotográfica e no seu poder de transformação. Sua busca incessante foi a produção de imagens que tivessem a energia mística e dramática capazes de perturbar o leitor. Por isso mesmo suas fotografias têm uma poderosa densidade ficcional que não permite que sejam confundidas com a realidade que representa. Para a crítica portuguesa Margarida Medeiros, "o seu trabalho de luz, por exemplo, evidencia o dramatismo da pose: neste sentido, o dicionário das figuras de Mario Cravo Neto aponta para esse valor potencialmente performativo das fotografias que se constituem como duplos fantasmáticos do seu autor, remetendo-nos para o campo da magia, da manipulação, do fetichismo; falando do medo, da morte, da solidão. O universo das fotografias de Mario Cravo Neto está muito centrado nessa solidão, na hipótese de uma transcendência improvável procurada pelo indivíduo". Suas fotografias integram as principais coleções institucionais e privadas do Brasil e do exterior. Mario Cravo foi o primeiro fotógrafo brasileiro a se consolidar no mercado internacional a partir do final da década de 80 e abrir as portas para a fotografia produzida no País. Iniciou sua trajetória em galerias nos Estados Unidos e Europa e foi o único brasileiro a realizar, em três ocasiões diferentes, exposição individual na lendária The Witkin Gallery, em Nova York, espaço que reunia o melhor da tradição, da qualidade e viabilidade comercial fotográficas. Nos últimos anos sua fotografia se revitalizou. Aprofundando-se na religiosidade ancestral dos Orixás, seu temperamento inquieto e inventivo transformou sua fotografia, mergulhando fundo na aventura da vida, em busca do momento do encontro com o improvável, quando em sua opinião, nasce de modo surpreendente a beleza da vida. Suas fotografias ganham outras luzes, diferenciadas texturas e materialidades, que são articuladas em dípticos ou trípticos, e adquiriram novas narrativas. Mas com as mesmas singularidades visuais que expressam sua sofisticada percepção de mundo. Um artista instigante que deixa uma produção de valor inestimável para a iconografia brasileira. Seus livros e suas imagens permanecerão para sempre no imaginário daqueles que acreditam como ele, que a arte é a representação de um instante infinitesimal tornado visível para todo o sempre. Mario Cravo Neto acreditava que a fotografia é puramente gestual, embora tenha a consciência que o dedo que aperta o botão contém o objeto do desejo - o êxtase momentâneo que se transforma em imaginação poética permanente. Mario foi um espírito provocador que soube articular seu conhecimento técnico a um formalismo apurado em fina sintonia com o sincretismo religioso de Salvador, Bahia, seu principal ponto de produção e reflexão. Como destacou Anne Wilker Tucker, diretora do importante Museum of Fine Arts, de Houston, Texas, "seu estilo é poético. Ele provoca nossa imaginação e envolve nossos desejos com o mistério e a beleza. Ele consegue imprimir de modo surpreendente suas fotografias em nossa memória". Rubens Fernandes Junior, pesquisador e curador de fotografia, é professor e diretor da Facom-Faap

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