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A liberdade no império das palavras

Serrote aposta nos ensaios, gênero que engana com a aparência de facilidade

Por Francisco Quinteiro Pires
Atualização:

O ensaio tem um formato textual que imita a vida. Todos sabem como e onde começa, mas não como e onde ele termina. Dizem, os mais ingênuos, que ele é fácil. Na verdade, é sinuoso, ele vai e vem como um serrote, título da revista de ensaios do Instituto Moreira Salles. "É um gênero perigoso", diz Matinas Suzuki Jr., um dos editores do periódico quadrimestral ao lado de Samuel Titan Jr., Rodrigo Lacerda e Flávio Pinheiro. "Viver é perigoso", alertara João Guimarães Rosa. Inspirada na norte-americana Virginia Quarterly Review, serrote (224 págs., R$ 29,90) oferece espaço generoso às imagens. O primeiro número publica, com exclusividade, desenhos do romeno Saul Steinberg (1914-1999), que fez mais de 1,2 mil trabalhos para a New Yorker, onde trabalhou por quase 60 anos. Feitos em folhas de um caderno de 1954, eles são exemplo do ataque às "convenções que podem tornar a vida uma monótona sucessão de comportamentos previsíveis", segundo Rodrigo Naves, autor de texto sobre o ilustrador. Uma das criações, publicada ao lado, mostra um gato montado num cavalo. O felino tem feições semelhantes às do romeno e concentra "com singeleza" as suas ideias essenciais. "Gatos são bichos domésticos que, diferentemente dos cães, não passam a vida em busca do reconhecimento dos humanos. E essa autonomia - a renúncia a seguir o que esperam de nós - havia de instigar Steinberg." Há um depoimento de Roberto Civita, publisher da editora Abril, sobre como seu pai, Victor, e seu tio, Cesar, foram responsáveis por divulgar a obra do artista. Ao pesquisar arquivos secretos da diplomacia portuguesa para escrever a biografia de Stefan Zweig, Alberto Dines encontrou documentos que mostram a dificuldade de Steinberg de sair da Europa conflagrada pela 2ª Guerra Mundial. Com título inspirado em A Idade do Serrote, de Murilo Mendes - "o prosador mais livre do modernismo" -, segundo Samuel Titan Jr., professor da USP, a revista traz carta inédita de Mário de Andrade a Otto Lara Resende e retratos do pintor José Pancetti feitos pelo francês Marcel Gautherot, pertencentes ao acervo do IMS. Modesto Carone traduz 109 aforismos de Franz Kafka: "A partir de certo ponto não há mais retorno. É este o ponto que tem de ser alcançado." ou "Uma vez incorporado o mal, não se exige mais que se acredite nele." Nuno Ramos escreve sobre o sambista Nelson Cavaquinho. O historiador italiano Carlo Ginzburg trata de O Último Suspiro de Marat, quadro de Jacques-Louis David. E.B. White e Edmund Wilson falam da indústria automobilística dos EUA. Na seção Alfabeto, Tostão reflete sobre o P de passe, Francisco Alvim sobre o S de serrote e Antonio Cícero sobre o V de verso. O segredo do ensaio, segundo Matinas, está na maneira de escrevê-lo e não no tema escolhido, uma vez que ele oferece oportunidade para falar de tudo: do suor e de sapato (temas comuns) ou do amor e da amizade (temas universais). Samuel Titan Jr. lembra Montaigne, autor dos Ensaios, que, pela primeira vez, traz à cena a subjetividade e, como "escritor leigo", escreve para um "público leigo e não institucionalizado". A Carta dos Editores cita Vinicius de Moraes, que percebeu no essay a "origem da brasileiríssima crônica brasileira". Tem lá sua razão, sobretudo se se lembrar de Rubem Braga, considerado o pai da crônica. Seu estilo se afigurava despretensioso. Manuel Bandeira falou da característica de doce puxa-puxa - palavra que aciona palavra. O Velho Braga parecia escrever sobre o nada. Mas, de repente, a vida explodia numa prosa em que convivem - disse Drummond - o humor, a sensualidade e a anarquia, coisas que pressupõem, ou buscam, a libertação. O mineiro resumiu o que o capixaba representa: "Esta a lição de Braga, ?lição de insaciável liberdade e gosto de viver?." serrote diz ter "como horizonte o espírito daqueles que viram, no ensaio, o jogo e a felicidade, e, no ensaísta, o homem liberto". O que se procura é a liberdade - no texto e na vida.

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