A Leniza só queria ser livre e amar

Clássico do carioca Marques Rebelo, A Estrela Sobe está completando 70 anos

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Por Francisco Quinteiro Pires
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Uma garota de fechar o comércio, como se dizia em outro tempo, Leniza Máier esperava muito da vida. Desejava uma coisa acima de todas as outras: ser livre. "Dispor de mim, você não compreende?" Além de fazer o que bem entendesse, gostaria de tornar-se cantora do rádio. Para realizar tal sonho, não precisava lançar charme por aí, afinal, suas formas bem torneadas eram o melhor cartão de visitas. O curioso é que sua vontade de independência e seu comportamento irresponsável a tornavam mais atraente aos olhos masculinos. Leniza é a protagonista de A Estrela Sobe, cuja publicação completa 70 anos. Com esse título, a José Olympio inicia a reedição das obras completas de Marques Rebelo. A Estrela Sobe é um painel social do Rio nos anos 1930, quando sofria intensa urbanização e testemunhava a era de ouro do rádio. Para mostrar uma cidade congestionada e apressada, soando tão falsa "quanto um sino rachado", Rebelo contou a trajetória de uma garota pobre, filha de um relojoeiro alemão e uma "mestiça disfarçada". Ao crescer, Leniza não se acomodou em empregos de remuneração modesta, nada glamourosos. Ela queria sair da miséria, integrando o casting de uma rádio, no tempo em que ser dona do próprio nariz equivalia a ser tachada como mulher de vida fácil. Seu comportamento desregrado fatalmente lhe causou problemas. Ela não sabia com clareza o que buscava, mas era certo que não invejava a felicidade pequeno-burguesa. Em A Estrela Sobe, percebe-se a influência do estrelato de Carmen Miranda, que monopolizou a atenção dos ouvintes. Como Leniza, ela se criou no Centro, na Lapa mítica, dos malandros e músicos, onde aprendeu, em gírias e em testemunhos, a malícia da vida. Mas, ao contrário de Leniza, Carmen conquistou a independência, além do sucesso internacional. O fim é parecido, ambas tiveram de lidar com dilemas morais, como o aborto, e foram trituradas pela indústria de sonhos do show biz - na conta de Carmen, o cassino, o teatro e cinema podem ser incluídos como moedores de carne e espírito. Rebelo mostrou que o sucesso atual se transforma na tragédia futura. Adotando um estilo fluente e coloquial, que faz do leitor um cúmplice, o romancista carioca desvendou o lado negro da vida artística. Ele fala dos intermediários exploradores das cantoras, muitas vezes escolhidas menos pelo talento da voz do que pela beleza do corpo. Por isso soa, no mínimo, irônico o título do programa da rádio Metrópolis, no qual Leniza estreou como cantora - Cidade Encantada. Se havia encanto, ele era tão falso quanto o brilho de bijuteria. Como escreve a crítica literária Beatriz Resende na orelha de A Estrela Sobe, é difícil julgar a trajetória de Leniza, não se pode dizer se ela é vítima ou algoz. Embora tivesse "qualquer coisa de égua de corrida" e gostasse de ser desejada por onde passasse, Leniza só queria mesmo era amar. Assim, oscilava entre a condição de anjo e demônio: ela era uma "moça em flor" dividida, que frequentava a leiteria após sair da garçonnière. Rebelo não deixa claro se a personagem sentiu amor verdadeiro pelos homens que conheceu. Se teve, renunciou a esse sentimento, lamentando-se depois, quando tudo ia mal. Ela era assim, piedosa e cruel com os sujeitos que lhe tiraram uma casquinha. A letra de Lama, samba (gênero tão apreciado por Rebelo) de Mauro Duarte, descreve com precisão as atitudes de Leniza, ao dizer que foi necessário descer moralmente para subir socialmente; para depois concluir: "Por isso não adianta/ Estar no mais alto degrau da fama/ Com a moral toda enterrada na lama." Algo semelhante ocorreu com o Rio, onde convivem a beleza e a violência. Egoísmo e pobreza tornaram melancólica e partida o que antes era só uma cidade maravilhosa, como mostraram depois os jornalistas Sérgio Porto e Zuenir Ventura. O desejo de liberdade havia mergulhado em trevas. No romance, Rebelo diz não ter abandonado Leniza - "alma tão fraca e miserável como a minha" - à própria sorte, ele teria perdido a personagem, apenas. "Tremo: que será dela, no inevitável balanço da vida, se não descer do céu uma luz que ilumine o outro lado das suas vaidades?" É impressionante perceber que alguma coisa não mudou desde que Marques Rebelo lançou, há 70 anos, A Estrela Sobe.

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