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A independência de um cão

Manuel Alegre fala sobre Cão como Nós, inspirado em seu voluntarioso bicho de estimação

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

A independência de Kurika impressionava até quem pouco o conhecia - disposto a atender apenas aos chamados que lhe interessavam, inteligente a ponto de conquistar a simpatia de um grupo seleto de pessoas, ele deixou forte lembrança no escritor português Manuel Alegre, que transformou tal relação no livro Cão como Nós (Agir, 124 páginas, R$ 40), cujo lançamento acontece hoje, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, com a presença do autor. Kurika foi o cachorro de estimação de Alegre, um épagneul-breton de manchas castanhas, gênio indomável e alma quixotesca. Especialista em relações humanas (sua capacidade de conquistar a atenção de quem lhe interessava era fascinante), o cão inspirou o escritor a produzir um texto em que discute relações. ''''Não se trata da história de um bicho qualquer'''', comentou Alegre que, no sábado, teve um encontro com Lygia Fagundes Teles, na Bienal do Rio, onde discutiram lirismo e memória. ''''Kurika era um cão com quem sempre tive uma tensa relação e, como um poeta, ele buscava a comunicação por meio da palavra exata.'''' O texto poético e cuidadoso transformou Cão como Nós em um grande sucesso editorial em Portugal, onde o livro vendeu mais de 100 mil exemplares. Nada surpreendente para quem acompanha a trajetória de Manuel Alegre - aos 71 anos, ele ostenta uma coesa carreira política. Além de poeta e romancista, ele é deputado pelo Partido Socialista português e, no ano passado, concorreu às eleições presidenciais, ficando em segundo lugar, com 20,7% dos votos, derrotado apenas para Cavaco e Silva, candidato de centro-direita. Na verdade, sua carreira política é extensa, iniciada ainda durante a juventude, quando se rebelou contra a ditadura de Salazar e pregou contra a guerra colonial. Como prestava o serviço militar, ele foi preso, em 1963, durante alguns meses, em Angola. Privado da liberdade, Alegre compensou com o refúgio oferecido pela escrita. Foi no cárcere que começou a escrever poemas de seu primeiro livro, Praça da Canção. Foi também atrás das grades que aprimorou o gosto da leitura. ''''Li muito Carlos Drummond de Andrade, o que me fascinou'''', relembra ele, que voltou a Portugal como clandestino até ser obrigado a viver exilado em Argel, durante dez anos. Nesse período, foi dirigente da Frente Patriótica de Libertação, além de também ter comandado um programa de rádio, A Voz da Liberdade. ''''Havia muita confiança, naquela época, de que a palavra poderia modificar a História.'''' Apesar da dor e das privações com que foi obrigado a conviver, Alegre não produziu uma obra panfletária, o que garante a perenidade especialmente de seus poemas. Alguns, aliás, proibidos em Portugal durante o salazarismo, circularam clandestinamente em fotocópias. A força de sua poesia, aliás, era tão poderosa que os versos de Trova do Vento que Passa, foram musicados e ganharam uma nova carga de emoção na voz de Amália Rodrigues, tornando-se um hino à liberdade. Alegre só voltou a Portugal depois da Revolução dos Cravos, em 1974, quando iniciou definitivamente sua carreira política - atualmente, é vice-presidente da Assembléia e membro do Conselho de Estado. Entre tantas reviravoltas, nunca deixou de ser leitor. E, com isso, cuidou também de sua careira literária. ''''Tive uma vida tensa e intensa'''', afirma. ''''A escrita é como um animal que devora a memória e o real nasce também da invenção.'''' Alegre conta que Kurika era um cão com atitudes típicas de um gato, como ficar à distância, sem se envolver tão proximamente com o dono. ''''Às vezes, quando recebíamos visitas, ele nos surpreendia pois fazia gestos que nunca fazia com ninguém da família'''', diverte-se Alegre que, somente após a morte do cachorro, é que sentiu o peso da dor. ''''Foi algo profundo.'''' E, confirmando uma verdade lembrada por Lygia Fagundes Telles, de que os personagens sempre voltam ao seu autor, cobrando pela continuidade de seu destino literário, Alegre afirmou: ''''Às vezes, ainda ouço seus passos''''. A desobediência é agora interpretada como a cobrança, por parte de Kurika, de seu exercício de liberdade. Um assunto que, definitivamente, sempre foi muito caro a Manuel Alegre.

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