A hora e a vez de Betty Faria viver Shirley Valentine

Depois de mais um longo período afastada da cena teatral, ela volta com personagem que considera modelo de superação

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Por Beth Néspoli
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Em 1966 Betty Faria estudava o método de interpretação do mestre russo Constantin Stanislavski com Eugênio Kusnet numa passagem do Teatro Oficina pelo Rio, quando ela integrou o elenco de Os Pequenos Burgueses. "A Funarte tinha de reeditar O Ator e o Método, de Kusnet, é uma bíblia", diz ela no camarim do Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. Onze anos depois de ter participado pela última vez de uma peça teatral, Um Caso de Vida ou Morte, em 1998, ela volta ao palco com a estreia hoje à noite, para o público, do solo Shirley Valentine, de Willy Russel, sob direção de Guilherme Leme. Depois daquela passagem pelo Oficina ela funda sua companhia, o Teatro Carioca, em parceria com os atores Claudio Marzo e Antônio Pedro. O grupo, como tantos outros, se desfaz depois de duas montagens, em 1968. A verdade é que começava ali um tempo de guerra ao teatro. De censura intensa. De desmanche dos grupos e dos projetos coletivos. Em 1973 ela estava no elenco de Calabar, mas a montagem seria interditada na véspera da estreia. Semanas depois, o cineasta Bruno Barreto bate à sua porta - "literalmente, porque eu morava naqueles apartamentos de Ipanema de três andares, sem elevador e antes da existência do interfone - trazendo debaixo do braço o script de A Estrela Sobe. O filme faz sucesso, carreira internacional, lhe dá muitos prêmios. "Minha vida mudou, até o meu nome. Ele me batizou de Betty, com dois tt e y." Quem a viu nas telas em Romance de Empregada, do mesmo diretor, não pode duvidar de seu talento. "Esse filme é meu xodó", diz ela. Bem, agora ela volta ao teatro depois de mais um período de longo afastamento. Sim, porque desde o início de sua carreira ela sempre foi uma atriz bissexta. "Já pedi licença aos deuses do teatro para estar novamente no palco. Desta vez como filha pródiga. Vim para ficar. Tenho vontade de ficar velhinha no teatro", diz. "Mas no momento estou igual criança. Tenho insônia. Será que São Paulo vai gostar de mim? Não é demagogia. Sinto-me uma adolescente nessa véspera de estreia, iniciando carreira nova." Escrita na década de 80, essa história de uma mulher que pode mudar uma vida aparentemente fadada à estagnação já conquistou platéias do mundo inteiro e ganhou versão cinematográfica. No Brasil, Shirley foi interpretada por Renata Sorrah em montagem de 1991. Quase dez anos depois, peças sobre o cotidiano feminino proliferam no palco, muitas apoiadas em estereotipias de gênero. Para Betty Faria, Shirley tem algo de especial. "É uma peça sobre a superação e transcende à questão feminina." Madura, filhos criados, frustrações e ressentimentos na bagagem, Shirley é uma dessas mulheres que transferiram aos outros - marido, filhos, pais - a responsabilidade por seu (bem ou mal) estar no mundo. E a maturidade, que ela encara como velhice, vem a calhar, porque serve como (mais uma) desculpa para sua incapacidade de tomar as rédeas de sua própria vida. Subitamente, o convite de uma amiga para uma viagem a Grécia pode mudar tudo. Mas ela hesita. Vai ou não viajar? "É a história de um ser humano que vai se autoresgatar. Tem um trecho no fim do monólogo que eu pedi para colocar no programa. Nesse momento ela diz que a culpa pelos problemas de sua vida não é de seu marido, mas da vida não vivida (leia ao lado). As pessoas vão deixando o tempo passar. Tenho um filho que virou paulista, tem 33 anos e trabalha muito. Ele vem ver a peça e tenho certeza de que vai bater no coração dele. A Shirley é solitária, fala com a parede. A vida moderna faz isso. As pessoas se isolam, dedicam tempo demais ao trabalho e de menos a si mesmas." Voar Ou Ficar, Eis A Questão Já faz muito tempo que eu venho falando sozinha, nem lembro mais quando comecei. Eu estou assustada. Tenho medo da vida do outro lado dessa parede. Quando era menina adorava pular do telhado de casa. Hoje eu tenho vertigem até de salto alto. Eu ando muito apavorada, juro. Apavorada de largar dele e descobrir que não existe lugar na vida fora daqui. Existia um lugar reservado pra mim. Mas quando perceberam que eu não chegava acho que deram o lugar pra outra pessoa - talvez alguém mais jovem, alguém que ainda saiba a língua que se fala lá fora, na vida. Então... O jeito é ficar aqui mesmo e se eu não for pra Grécia...Tudo bem. Ficar aqui fritando ovo com batata é melhor. Eu não sabia se fazia o que eu queria ou o que eu tinha de fazer. Estávamos em pé na fila do check-in, eu e a Jane . Eu perguntei para ela "pra que tanta vida se a gente não usa?" Ela disse que era culpa dos homens e continuou a ler a sua revista. Bobagem, não são os homens que fazem isso com as mulheres. Eu vejo pelo Jorge, acontece o mesmo com ele. Ele tem muito mais vida do que consegue usar. Quanto desperdício. É assim com todo mundo. A gente diz que está tudo bem. E vai levando, levando, e de repente morre. Mas o que mata é esse excesso de peso de toda uma vida sem uso. Serviço Shirley Valentine. 60 min. 12 anos. Centro Cultural Banco do Brasil (125 lug.). Rua Álvares Penteado, 112, Centro, telefone 3113-3651. De 5.ª a sáb., 19h30; dom., 18 h. R$ 15. Até 21/6

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