A história da viola e seus tocadores

Em livro e DVD, Violeiros do Brasil, que será lançado com shows no Ibirapuera, traz depoimentos de seus principais expoentes

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Por Lauro Lisboa Garcia
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Todas as realizações do Projeto Memória Brasileira, da produtora e curadora Myriam Taubkin, especializada na imensa criação musical do País, colocaram os respectivos instrumentos no centro da questão. A série já contemplou o violão, o piano, a sanfona, os sopros e a percussão. Com Violeiros do Brasil, que sai agora em livro e DVD, quem está no foco principal são os instrumentistas. "Porque é difícil não associar o instrumento ao tocador. Não poderia dizer o Brasil da viola, ou das violas, acho que são os tocadores, que não chamei de tocadores, mas violeiros, porque só foco os profissionais", diz Myriam. "Sinto que esse projeto é uma criação minha mais do que os outros, é um olhar meu. É o que eu mais ousei." Dos 11 desses habilidosos violeiros contemporâneos que se destacam no projeto, 6 estarão nos shows de lançamento neste sábado e domingo, no Auditório Ibirapuera: o pernambucano Adelmo Arcoverde, o sul-mato-grossense Almir Sater, os mineiros Ivan Vilela, Roberto Corrêa e Pereira da Viola e os paulistas Paulo Freire e Passoca. Os outros cinco contemplados no projeto farão show em Brasília no dia 3 de setembro: Braz da Viola, Pena Branca, Tavinho Moura, Zé Mulato & Cassiano. Livro e DVD são complementares entre si e do projeto de show e CD realizado em 1997, que reuniu esses mesmos violeiros, mais os mestres Renato Andrade e Zé Coco do Riachão, já mortos. Myriam diz que os deixou à vontade para falar o que quisessem sobre suas relações com a viola. Os depoimentos, reveladores de peculiaridades importantes, por vezes coincidem, mas cada produto tem material exclusivo. Na parte final do livro há uma relação de cerca de outros 300 violeiros e luthiers profissionais em atividade. O mais velho é Flor do Campo, nascido em 1929. O mais novo é Gabriel da Viola, de apenas 14 anos. A maioria desses músicos é originária do Brasil central, onde a viola se desenvolveu desde a época do Descobrimento, identificando-se com a cultura caipira. Mais concentradamente no interior de Minas e São Paulo. Ali, negros, europeus e até indígenas miscigenados, saudosos de casa ou de uma vida anterior, imprimiram à música tocada na viola um componente nostálgico. Contribui para o sentimento de melancolia a própria condição solitária do caipira, vivendo no vasto sertão, nesse mundão de mato e silêncio. No entanto, os violeiros também fazem a trilha sonora das festas, das folias, transitando com desenvoltura entre o sagrado e o profano. Seu santo padroeiro, São Gonçalo do Amarante, é encarregado de casar as solteironas, pra lá de balzaquianas, que Santo Antônio deixou passar. Reza a lenda que ele, dançarino incansável, também gostava das "moças prazerosas". A maioria dos violeiros, em suas declarações, não consegue explicar a profunda relação que têm com a viola, como se formassem um corpo só, como se fossem tomados por uma força maior. Uns atribuem a uma graça divina, outros acreditam em pacto com o Capeta. Colocar guizo de cascavel também, diz-se, melhora o som do instrumento e as propriedades do tocador. Representante do Nordeste, Adelmo Arcoverde é o principal contraponto a tudo isso. Primeiro porque, como ele explica, o violeiro nordestino não tem como musa inspiradora "a natureza tão linda", "a beleza do riacho". Quem convive com seca e violência tem uma visão mais dura do mundo, e até a própria maneira de tocar a viola é a mais agressiva. Em vez da melancolia portuguesa, da lírica do fado, que ele vê como forte influência da música caipira do interior mineiro e paulista, a viola nordestina tem como referência a música árabe e até a cítara indiana. Além do mais, ele acha "superstição boba" essa história de guizo de cobra. Pacto com Capeta, nem pensar. "Quem dá talento pra gente fazer as coisas é Deus." É claro que nem todos acreditam em nada dessas coisas, mas, como diz Ivan Vilela, também não questionam. Para o bom violeiro é importante preservar certos valores da cultura popular. E a crença - como a honestidade, o valor da palavra, o respeito aos mais velhos, a preservação do ambiente e a relação com a gente do povo - faz parte desse universo. "Simplicidade e autenticidade são irmãs gêmeas, somando as duas vai gerar a verdade", ensina Zé Mulato. Mesmo os músicos urbanos, quando se apaixonam pela viola e a cultura onde ela se desenvolveu, diz Vilela, acabam virando guardiães dessa cultura. Estes são alguns dos vários aspectos abordados no livro e no DVD, com prazerosos depoimentos dos violeiros, que também se revelam bons contadores de histórias, como foi o maior de todos seus inspiradores, o mineiro Renato Andrade (1932-2005). Reverenciado por unanimidade pelo pioneirismo, Andrade, que levou a viola para as salas de concerto, é um dos mestres homenageados do projeto. O outro é Zé Coco do Riachão (1912-1998). Embora muitos conhecimentos ainda sejam passados de pai para filho, hoje a viola é ensinada na universidade, onde, segundo Vilela, "entrou pela porta da frente do templo da alta cultura". "A viola vai na contramão de todos os instrumentos, porque é o único que se conservou na oralidade", diz Myriam. "Hoje você se forma em viola caipira pela USP, pela Unesp, mas o que acontece de interessante é que antes de Roberto Corrêa, Braz da Viola e outros, não havia material didático para se estudar. Então é aquilo que o Almir fala de um violeiro passar para o outro, porque não tinha escola." Além da graduação universitária, hoje a viola também se modernizou e se manifesta em diversos gêneros, com várias técnicas e estilos. Os músicos que vão tocar no Ibirapuera são exemplares disso. O público que vá preparado, avisa Myriam Taubkin, porque, como no DVD, o roteiro é só de músicas inéditas ou desconhecidas. "A minha preocupação com esse show é mostrar que a viola tem um lado muito forte de raiz, mas também tem um traço contemporâneo. Muitos desses músicos tocam a viola de um jeito muito moderno", diz Myriam. Com prefácio de Inezita Barroso, o livro tem belas fotos de Angélica Del Nery. O DVD não fica atrás, com imagens de Sérgio Roizenblit, responsável pela fotografia, pela edição e pela direção, nos ambientes naturais de cada um dos músicos e seus elementos agregados. São tantas boas histórias... E como tocam esses violeiros! Serviço Violeiros do Brasil. Auditório Ibirapuera (800 lug.). Av. Pedro Álvares Cabral, s/n.º, portão 2 do Parque do Ibirapuera, 3629-1075. Sáb., 21 h; dom., 19 h. R$ 30

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