A Dolores Duran que só poucos puderam ouvir

Na antologia inédita que vem por aí, ela canta em inglês e em francês, com Baden Powell ao violão

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Por Sérgio Augusto
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As três maiores cantoras brasileiras reveladas na década de 1950 morreram precocemente: Dolores Duran, aos 29 anos; Sylvinha Telles, aos 33; Maysa, aos 34 - as duas últimas em acidentes de carro. Outro ponto em comum: eram legítimos produtos de exportação. Até porque sabiam cantar em outras línguas, poderiam ter feito carreira no exterior, mas apenas Maysa explorou esse veio. Ela também foi a única das três biografada numa minissérie de TV, cuja repercussão deixou a anos-luz de distância a insípida cinebiografia que sobre Dolores (A Noite do Meu Bem) Jece Valadão dirigiu em 1968, com Joana Fomm no papel da cantora. Sylvinha tinha um jeito luminoso de cantar, Maysa também compunha, mas a obra que em apenas nove anos de carreira Dolores nos legou, sobretudo como autora, só tem equivalentes entre os marmanjos que antes dela também fizeram da dor de cotovelo uma inesgotável fonte de inspiração, como Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues e Antônio Maria. Precursora da Bossa Nova, inclusive por suas três parcerias com Tom Jobim (Se É por Falta de Adeus, Por Causa de Você e Estrada do Sol), tinha tudo para uma participação fulgurante no movimento. Não foi além, contudo, do histórico show da Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio, em 22 de setembro de 1959. Morreria 32 dias depois, dormindo, o coração exaurido por três tipos de excessos: de estresse, de álcool e de barbitúricos. Na comparação com os grandes ídolos femininos da época, como Marlene, Emilinha Borba, Ângela Maria, Dalva de Oliveira e as irmãs Linda e Dircinha Batista, seu sucesso foi pouco mais que modesto. Teria ficado ao deus-dará se dependesse de fãs-clubes ou de um alentado dossiê de reportagens na Revista do Rádio para ser crooner na noite e da Rádio Nacional. Sua ascensão ao estrelato deveu-se acima de tudo à admiração que lhe devotavam os colegas de profissão e a elite social e intelectual que todas as noites enchia a cara nas casas noturnas de Copacabana. Nascida em 7 de junho de 1930 na Saúde, bairro pobre do Centro do Rio, e criada nos subúrbios de Irajá e Pilares, teve uma infância de privações ao lado da mãe viúva e quatro irmãos. O rádio a salvou. No mais reputado programa de calouros da época, comandado por Ary Barroso, tirou a nota máxima, cantando Vereda Tropical em português e espanhol. Tinha apenas 10 anos. Logo a puseram em outra atração radiofônica da Tupi, Escada de Jacó, e no radioteatro infantil da emissora. Seis anos mais tarde, venceria um concurso de boleros e assinaria contrato com o Vogue, o mais célebre nightclub carioca. Precisou falsificar a idade para virar crooner de rádio e boate. Adotada pela nata de cronistas e compositores, refinou-se por osmose e até mudou um pouco de personalidade, disfarçando seu jeitão alegre e brincalhão com uma persona compenetrada e sofrida, mais de acordo com o seu repertório musical, mas não com o seu rosto de lua cheia, graças ao qual ganhou o apelido de Bochecha. Vez por outra, tinha uma recaída e adotava ritmos "plebeus" (um de seus maiores sucessos foi o gaiato baião de Chico Anísio, Filha de Chico Brito, gravado em 1956) e alguns buliçosos sambinhas de Billy Blanco, como A Banca do Distinto, Pano Legal e Estatutos de Boate. Mesmo eleita a melhor cantora de 1955, não se deu por satisfeita. Queria ser mais popular. Não conseguiu. Era outra a sua turma: Tom, Lúcio Alves, Tito Madi, Dóris Monteiro, Os Cariocas, Agostinho dos Santos, Johnny Alf, Luiz Bonfá, João Donato, Newton Mendonça, Vinicius de Moraes etc. Um ano antes de sua morte, excursionou pela então União Soviética, com Nora Ney, Jorge Goulart e o Conjunto Farroupilha, desistindo em Moscou de prosseguir a turnê até a China, que de bom grado trocou por um mês em Paris, onde se apresentou num barzinho muito prestigiado por brasileiros. Seu último disco, gravado ao vivo numa boate paulistana, Dolores no Michel de São Paulo, foi lançado postumamente, pelo selo Copacabana. Nunca saiu em CD. Neste formato, apenas uma compilação de seus maiores sucessos ainda pode ser encontrada à venda, se a sorte estiver do seu lado. Nos próximos dias, a Biscoito Fino põe no mercado uma preciosidade: um CD com 13 performances inéditas da cantora. Com o título de Dolores Duran entre Amigos, reúne 10 interpretações registradas em fita magnética durante uma festa na casa do produtor de TV Geraldo Casé, entre 1958 e 1959, mais três, gravadas em outro sarau doméstico, em 1949 e 1953. É um tesouro arqueológico, exumado pela jornalista Angela de Almeida, que a ele chegou quando pesquisava a vida e a obra da cantora. Entre os amigos, longe dos compromissos das boates, onde sempre lhe pediam para cantar A Noite do Meu Bem, Fim de Caso, Manias, Ideias Erradas e outros highlights do seu repertório, Dolores costumava relaxar em inglês, francês, italiano e espanhol. Reza a lenda que Ella Fitzgerald encantou-se ao ouvi-la cantar My Funny Valentine, na boate Baccarat, e que Charles Aznavour entrou em êxtase com suas interpretações de canções de Edith Piaf, no Little Club. Só quatro músicas brasileiras ela apresentou na tertúlia organizada por Casé: Neste Mesmo Lugar (um dos maiores hits de Dalva de Oliveira), Coisa Mais Triste (de Billy Blanco), Marca na Parede (de Ismael Neto e Mario Faccini) e Mocinho Bonito (sucesso de Blanco lançado por Doris Monteiro). O resto viera de fora, consagrado pelas vozes de Ella (How High the Moon), Julie London (Cry me a River), Piaf (Hymne à l?Amour), Eddie Cantor (Makin? Whoopee), Fred Astaire (Cheek to Cheek) e Judy Garland (Over the Rainbow). Acompanhando Dolores, três ases instrumentais: os violonistas Baden Powell e Manoel da Conceição (mais conhecido como Mão de Vaca) e Chiquinho do Acordeom. Que jam-session, hem? A descontração dá a tônica. Dolores deleita-se num scat singing (durante How High the Moon), conversa com Powell ("Eu canto em mi, você veio de ré"), pergunta ao dono da casa "se já está gravando", cumprimenta um conviva retardatário, mas jamais condescende com o amadorismo. As três faixas-bônus que fecham o CD revelam a Dolores que, desde o final dos anos 1940, ainda com seu nome de batismo (Adiléia Silva da Rocha), frequentava o animado apartamento do casal Raul e Helenita Marques de Azevedo, avós da cantora Marisa Monte, no Morro da Viúva, Zona do Sul do Rio. Ela tinha só 19 anos quando lá cantou Body and Soul, acompanhada ao piano por Jacques Klein, e Eu sem Você, de Billy Blanco, com o próprio, ainda estudante de arquitetura, fazendo dupla ao violão com o piano de Klein. A terceira bonificação é uma canja de 1953, com Adiléia, já Dolores Duran, ensaiando o samba-canção de Blanco, Praça Mauá, que dois anos mais tarde gravaria profissionalmente. O ano de 1955 não foi o mais importante da carreira de Dolores só por causa do prêmio que os críticos de música cariocas lhe deram mas sobretudo porque pouco antes de completar 25 anos, ela começou a compor. Com a cara e a coragem. Tinha noções de violão, mas uma pauta de música era, para ela, um hieróglifo. Quando baixava a inspiração, memorizava a melodia, que depois cantarolava para alguém versado em pentagramas transcrevê-la. Esse alguém quase sempre era o pianista Ribamar, seu parceiro em várias músicas: Ideias Erradas, Quem Sou Eu?, Pela Rua, Se Eu Tiver e as póstumas Ternura Antiga e Quem Foi?. Mas suas obras-primas ou foram aquelas musicadas por Tom Jobim ou por ela própria. A propósito, é pura lenda aquela história de que ela teria escrito os versos de Por Causa de Você de uma sentada, num lenço de papel, com o lápis de sobrancelha. Ela de fato tinha o hábito de rascunhar rimas e estrofes em guardanapos, com o lápis de sobrancelha, mas a letra de Por Causa de Você não brotou de repente, com as últimas notas do piano do Tom ainda vibrando no ar. Na verdade, Tom Jobim precisou tocar a melodia várias vezes para que ela a decorasse e, depois, com a necessária calma, escrevesse os versos. Vinicius de Moraes, a quem a letra fora originalmente encomendada, foi o segundo a reconhecer que Dolores Duran fizera um trabalho difícil de superar. Mulheres abandonadas, casais esfacelados, terríveis crises de solidão e humilhantes pedidos de perdão - era disso que quase todas as canções de Dolores tratavam. Estrada do Sol foi uma rara exceção. Aquela alegre manhã, com os pingos da chuva ainda a brilhar, não se repetiria outra vez em suas composições e raramente, diga-se, aconteceu em sua vida particular, pois não foi das mais felizes a carreira amorosa de Dolores. Se tivesse feito apenas Por Causa de Você e os quatro solos que melhor caracterizam seu estilo (Castigo, A Noite do Meu Bem, Fim de Caso e Solidão), já mereceria o altar em que ainda em vida foi posta pelos seus incontáveis devotos. Santa Dolores.

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