A crônica da inveja e a inveja da crônica

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

Ao escrever sobre a inveja, essa companheira do ciúme, do despeito, do ódio e do horror (como diz Lupicínio Rodrigues, em Nervos de Aço), eu não tinha idéia da reação que iria provocar. Somente me dei conta do peso do assunto quando recebi sugestões precisas de como escrever e que autores usar para discorrer sobre esse sentimento tão básico, quanto complexo, da experiência humana. Como tudo o que se localiza na difícil arena do que, nós cristãos e cartesianos (que imaginamos ser, acima de tudo, sujeitos dotados de razão), chamamos de ''''sentimentos'''', a inveja abre um oceano de questões, a começar pela própria definição do que é isso que chamamos de sentimentos, por oposição aos nossos interesses explícitos que seriam racionais e objetivos. O coração, dizia Pascal, tem razões que a razão desconhece. O mesmo ocorre com o corpo como uma usina de sentimentos egoístas e anti-sociais, como disseram muitos estudiosos. A alma seria motivada pela razão e sempre altruísta mas, como compensação, quem tudo realiza, para gozar ou sofrer, é o corpo! Por exemplo. Um sujeito deseja intensamente uma mulher. Segue então, da conquista ao motel uma impecável linha de racionalidade: escreve bilhetes, envia flores, mente para a esposa, economiza dinheiro e enfeita-se. Mas no motel, diante do objeto de suas fantasias, confronta-se com uma inesperada ausência de libido: tem - apesar do impulso fremente - uma brutal e incorrigível inibição sexual. O choque, para quem passou pela experiência, é dramático. Se tudo no mundo é determinado pelo desejo individual, com sua diabólica clareza, se o sujeito, afinal sentia a flama inquestionável do desejo e tinha a mais absoluta certeza dele; se durante meses moveu Seca e Meca e equacionou meios e fins para concretizar o encontro erótico, de onde vinha essa indesejada incapacidade impeditiva do pecado que tanto queria perpetrar? Para tornar ainda mais contundente essa questão, citemos o exato oposto. O caso do sujeito que sente uma atração irresistível pela pessoa errada: pela irmã ou cunhada. Mas sem nenhuma inibição realiza o desejo que se concretiza em incesto promovendo culpa, expiação, tragédia e, talvez, reparação. De onde vem esse impulso proibido e indesejável que configura, a uma só vez, pecado, tabu e crime? Se estamos conscientes de nossa condição social, se sabemos quem somos e, se o mundo é mesmo tocado a interesses que chegam límpidos ao consciente, de onde vêm as emoções que não combinam com tais projetos de comportamento? Se a sociedade teme a inveja e o ciúme que seriam por definição destrutivos ou anti-sociais, como dizia, por exemplo, o eminente antropólogo George Foster, que escreveu um ensaio importante sobre o tema, por que eles surgem na consciência social de modo tão intenso e de forma tão exemplar? Seria a inveja (e os sentimentos em geral) os motivadores das instituições sociais que serviriam para moldá-los e resolvê-los; ou seria o exato oposto: as instituições - leis, regras, proibições, mandamentos, rituais e prescrições em geral - é que engendrariam esses sentimentos indesejáveis que delas escapam como as faltas e os pênaltis nos jogos de futebol? Muitos dos que comentaram minha crônica supõem que a inveja é um sentimento inato e natural, pronto a ocorrer onde quer que existam seres humanos. Deste ponto de vista, o cronista que aborda a inveja como sendo dependente da sociedade, não apenas incorria em erro, mas produzia uma matéria incompleta. Se eles, os leitores, escrevessem sobre tal assunto, o ponto de partida seria certamente diverso. De fato, conheço pessoas que não cessam de me indicar temas e pessoas sobre os quais eu deveria escrever. Os mais impacientes chegam mesmo a dizer que eu deveria ''''meter o pau'''', insinuando que tenho sido leniente (ou covarde) com o momento em que vivemos. Outros, porém, me perguntam - como fez um ex-aluno, ex-revolucionário das festivas utopias hoje em crise, filhinho de papai e companheiro zeloso em acusar quem fica na coluna ''''do bem'''' ou ''''do mal'''' - por que eu escrevo coisas tão ''''reacionárias''''. Falando de inveja, eu não poderia deixar de repensar essas memórias da crônica, ao vivo e em cores, dizendo primeiramente aos leitores que, como todo ser humano, o escritor não faz o que quer, mas o que pode. A diferença entre querer e poder inventa o abismo que permite aproximar ou tornar distante o que ocorre conosco e, por projeção, com os outros. Pena que cada qual não possa ser simultaneamente leitor e cronista. Uma situação - aliás - que, fica a sugestão, pode ser corrigida pelos jornais que se dispusessem a selecionar e publicar as crônicas do jornalista e escritor latente (e infelizmente, às vezes, desconhecido) que jaz dentro de cada um de nós. Aí o leitor veria como é fácil sugerir e falar de temas bons para ''''cronicar'''' e como é duro realizá-los em letra de forma, tirando-os daquela zona maravilhosa da possibilidade e do sentimento que faz da inveja algo concreto e altamente produtivo.

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