A ciência guiada pela música e pintura

Pensador encontrou em Wagner e Max Ernst um caminho para pensar o mito

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Por Mariza Werneck
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Claude Lévi-Strauss dedicou 20 anos de sua centenária vida ao estudo de mitos ameríndios, cujo resultado se encontra em sua obra maior, as Mitológicas, um dos maiores inventários de mitos da contemporaneidade. Durante esse período, descreve-se como um monge, levantando-se ao nascer do dia, ainda não totalmente desperto, impregnado de mitos, vivendo uma experiência estética extraordinária. Sem compreender, convivia com determinado mito por semanas ou meses, até que o detalhe inexplicável de outro mito se reconhecia no primeiro, e os dois se iluminavam, plenos de sentido. Praticava o método há algum tempo quando se deu conta de que seus princípios já estavam em Wagner, a quem passou a reverenciar como pai da análise estrutural do mito. A presença da música wagneriana em sua vida pode ser localizada desde a infância. Descendente de músicos e pintores, conviveu precocemente com a paixão pela ópera. Segundo afirma, os mistérios da criação musical sempre o intrigaram, na medida em que se anunciam de forma epifânica, quase como uma revelação. Sentindo-se incapaz de criar música, o que lhe resta é imitá-la na análise estrutural dos mitos. Adota como modelo O Anel do Nibelungo, quatro dramas musicais de Wagner, que se desdobram e prosseguem uns nos outros. Essa mesma inspiração vai guiar Marcel Proust em sua busca do tempo perdido, Honoré de Balzac na construção da comédia humana e Stéphane Mallarmé no projeto de um livro infinito. Tão trágico quanto a ópera wagneriana, o mito levistraussiano dramatiza a criação do mundo, o desejo do incesto, o mal-estar na cultura. Busca a resolução de enigmas, consulta oráculos, perscruta a vida e a morte. Lévi-Strauss habita ainda o coração da tragédia quando, pela dissolução de si mesmo no mito e na música, preserva o espírito dionisíaco tal e qual foi definido por Nietzsche, ou seja, "uma realidade cheia de embriaguez, que não se preocupa com o indivíduo, pretende até a aniquilação do indivíduo e sua dissolução libertadora por um sentimento de identificação mística". Ao construir um intrincado sistema de correspondências entre os mitos, Lévi-Strauss reivindica, como procedimento metodológico, o desaparecimento do autor durante o exercício da análise, condição essencial para atingir regiões profundas do inconsciente, "onde os mitos falam entre si, à revelia dos homens". Mas não se enganem aqueles que, ludibriados pela forma singular de Lévi-Strauss acercar-se dos mitos, buscam nas Mitológicas estados alterados de consciência ou fragmentos perdidos de uma experiência extática. É preciso lembrar com Nietzsche que os gregos, justamente por serem dionisíacos se tornaram apolíneos. A arquitetura interna das Mitológicas obedece a um rigor metodológico dificilmente encontrado na história do pensamento. Para citar apenas um de seus comentadores, Octavio Paz, por diversas vezes, debruçou-se sobre os mitos levistraussianos, e desistiu, "chocado com o caráter técnico da obra". Mas insistiu, penetrando em um "labirinto penoso, mas fascinante". A ciência de Lévi-Strauss, se é densa de musicalidade é também plástica, imagética. Assim como imitam a música wagneriana, seus mitos mimetizam os quadros, retratos e paisagens que o habitam desde a infância, vivida em casa de pai e tios pintores, e na freqüentação das telas de Poussin, Ingres, Chardin, das estampas japonesas e, mais tarde, da arte surrealista. Para decifrar seus textos é preciso antes percorrer uma pequena galeria de arte, um recinto de imagens onde elabora seu pensamento. Curiosamente, no entanto, e logo na introdução de O Cru e o Cozido, primeiro volume das Mitológicas, Lévi-Strauss, ao reivindicar a música como método privilegiado de análise, renega a pintura como instrumento para pensar o mito. Só mais tarde, após a publicação do último volume da obra, passa a registrar sua dívida com as colagens de Max Ernst, com quem conviveu no exílio em NY, na 2ª Guerra. Desse encontro nasceu uma amizade duradoura marcada por profundas afinidades. Lévi-Strauss e Ernst partilhavam do mesmo fascínio pela arte primitiva, pela floresta, pelos pássaros e objetos. Foi o pintor quem o introduziu nos mistérios de um verso de Lautréamont ao qual Lévi-Strauss presta tributo em seu livro O Olhar Distanciado: "Belo como, sobre uma mesa de dissecação, o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura." Este verso, que se transformou em princípio fundamental da estética surrealista, deve sua celebridade, entre outros, ao fato de reunir três objetos de ordens completamente diversas. A partir dele, o autor das Mitológicas vai criar imagens igualmente perturbadoras, guiado apenas pelas leis secretas do acaso, juntando fragmentos de mitos que não possuem na aparência qualquer afinidade. Para Lévi-Strauss, esses encontros só podem ser considerados fortuitos à luz da experiência vulgar. A aproximação insólita desses objetos, "metáforas invertidas uns dos outros", representa um convite para decifrar suas íntimas correspondências e sua recíproca estranheza. O método da colagem inspirado em Ernst vai ser reconhecido por Lévi-Strauss como a própria essência do procedimento estruturalista. Muito mais do que uma técnica, que recorta e reelabora fragmentos em um novo conjunto, é também um método de pensar e uma forma de percepção do mundo. Permanentemente recortados e organizados em uma nova ordem, os mitos de Lévi-Strauss propõem um desafio à inteligência e à sensibilidade, na medida em que jamais adquirem uma forma definitiva: de cada mito sempre poderá surgir outro. Nesse sentido, a aventura intelectual que ganhou, no início da segunda metade do século 20, o nome de estruturalismo ultrapassa, em muito, a perspectiva de um simples modismo. Percorrer, junto com Lévi-Strauss "a terra oca e redonda dos mitos" implica aceitar o convite de uma reelaboração permanente do imaginário e os limites de uma interpretação que permanecerá para sempre inconclusa. Mariza Werneck é professora de antropologia e estética na PUC-SP, realizou doutorado sobre mitos e experiência estética em Claude Lévi-Strauss

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