''A chatice é constitutiva da literatura moderna''

Francisco Bosco, ESCRITOR E ENSAÍSTA

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Filho de pai famoso (o cantor e compositor João Bosco), de quem é parceiro em algumas letras de música, Francisco Bosco é escritor e ensaísta, autor de Banalogias (2007), Dorival Caymmi (2006) e Da Amizade (2003). É mestre e doutor em Teoria Literária pela UFRJ. Seus textos podem ser lidos mensalmente em sua coluna na revista Cult. Que livro você mais relê? E qual a sua impressão das releituras? O leitor que relê se vê diante de um espelho diacrônico. A diferença entre o lido e o relido é a diferença subjetiva percorrida pelo leitor nesse intervalo. Dê exemplo de livro muito bom injustiçado, pelo público ou pela crítica. Entre os incompreendidos, lembro Campos de Carvalho, cuja obra não encontrou seu lugar nos polarizados anos 60 e agora vem sendo (re)descoberta. Entre os pouco lembrados, cito Oriki Orixá, de Antonio Risério, e Modos de Saber, Modos de Adoecer, de Roberto Correa dos Santos. Cite um livro que frustrou suas melhores expectativas. A Vida como Ela É, do grande Nelson Rodrigues. É chapado, sem sutileza, caricatural. E um livro surpreendente, bom e pelo qual você não dava nada? Isso não acontece nesses termos, pois, se me disponho a ler um livro, é porque já espero algo dele. Mas Célébrations, de Michel Tournier, comprei um pouco às escuras e foi decisivo. A boa literatura está cheia de cenas marcantes. Cite algumas de sua antologia pessoal. A longa cena da caçada no pântano, em Anna Karenina. Ali, Tolstoi escreveu como se fosse um cão farejador ou um cervo pressentindo a iminência da morte. É o homem exercendo sua animalidade, relacionando-se com as coisas por meio dos sentidos aguçados, como que desprovido de linguagem. Que personagens são tão marcantes que ganham vida própria na sua imaginação de leitor? Neste momento, são conceitos: não posso mais enxergar a experiência humana senão pelos registros do real, do simbólico e do imaginário, tal como propostos por Lacan. Que livro bom lhe fez mal, de tão perturbador? Ó, de Nuno Ramos. Eu esperava aquela confiança nas ideias, aquele erotismo da inteligência que havia em Ensaio Geral, e eis que vem de cara uma epistemologia melancólica, um canto sombrio sobre a humanidade. De qual autor você leu tudo, ou quase tudo? Qual o motivo do interesse que ele desperta em você? Acho que só de Rimbaud e Raduan Nassar... Brincadeiras à parte, não tenho fantasias de totalidade. Barthes foi seguramente o autor que mais li, mesmo assim não li tudo. Existe algum autor com o qual você jamais perderia seu tempo? Pode-se aprender tanto com a precariedade quanto com a grandeza. A estupidez e até a má fé têm grande poder inspirador; é uma opacidade que ilumina. Leio muita coisa de que espero não gostar, porque espero não gostar. Cite um livro que foi fundamental em sua formação, mesmo que hoje você não o considere tão bom como na época em que o leu. Tenho a impressão de que hoje não me interessaria por Rubem Fonseca, mas posso estar enganado. Os livros de autoajuda são mesmo todos ruins ou isso é puro preconceito da crítica? Caso goste de algum deles, poderia citá-lo e justificar sua preferência? Se autoajuda é algo que pretende situar uma possibilidade de transformação existencial num conjunto de ensinamentos dogmáticos, numa força cósmica qualquer ou no famigerado pensamento positivo, então isso é a antiliteratura por definição, e só pode ser ruim (literariamente) e ineficaz (existencialmente). Cite: a) Um livro meio chato, mas bom A chatice é, de certo modo, constitutiva da literatura moderna, ou de grande parte dela. Barthes dizia que o tédio é o gozo visto das margens do prazer. Isso se aplica, a meu ver, de Mallarmé a Doutor Fausto. b) Um livro que você acha que deve ser muito bom mas jamais leu. Por duas vezes iniciei a leitura da Recherche, mas abandonei. Um dia espero levá-la adiante. c) Um livro difícil, mas que você considere indispensável. A meu ver, não há nenhum livro indispensável. Mas todo grande livro é insubstituível. Freud, por exemplo, é difícil (embora seja claro), mas compensa toda a dificuldade. d) Um livro que você considere pior do que o filme baseado nele. Não me ocorre. A tendência, quando já lemos o livro, é o preferirmos à sua versão fílmica. Há um logro quase inevitável na relação entre cinema e literatura: o significante nunca é recuperável, e no entanto uma adaptação mobiliza essa esperança. Que livros ficariam melhores se um pedaço fosse suprimido? Valéry dizia que jamais produziria um romance por se recusar a escrever uma frase como "A Marquesa saiu às cinco da tarde." Ocorre que se a Marquesa não sai de tarde, ela não pode morrer na página 396. De que livro você gostaria de mudar o final? Por quê? É claro que dá vontade de absolver todos os que amamos. Que Julian Sorel (O Vermelho e o Negro) pudesse prosperar, que Diadorim (Grande Sertão:Veredas) sobrevivesse, que Capitu (Dom Casmurro) fosse feliz. Mas aí não seria a vida, não seria a literatura. Que livros contrariam suas convicções, mas que ainda assim você julga de leitura imprescindível? Todos os de Nietzsche, um autor que me coloca diante de contradições insuportáveis. A literatura contemporânea é muito criticada. Que livro (s) publicado (s) nos últimos dez anos mereceria, para você, a honraria de clássico? Dois Irmãos, de Milton Hatoum, sem dúvida. Para que clássico brasileiro, de qualquer tempo, você escreveria um prefácio incitando a leitura? Para Raízes do Brasil. Que livros (brasileiros ou estrangeiros) sempre presentes nos cânones não mereceriam seu voto? E qual é um livro sempre ausente, mas no qual você votaria? Não gosto, por exemplo, de Amar, Verbo Intransitivo,de Mario de Andrade (acho que lhe falta talento narrativo). Gosto da obra adulta de Monteiro Lobato e fico feliz que esteja sendo reeditada. Sobre a crítica: a) Que livro festejado pela crítica você acabou por detestar? História do Olho. Considero Georges Bataille um grande pensador e um mau romancista. Neste livro, eu acho ridícula a pretensão de transgressão fundada numa imaginação sexual de seminarista. b) E de que livro demolido por críticos você gostou? Não demolido, mas subestimado: Incidentes, de Barthes. c) Quais bons autores você só descobriu alertado pela crítica? São muitos. Cyro dos Anjos, por exemplo, graças a Antonio Candido. O Amanuense Belmiro detém, aliás, para mim, o melhor início de romance que eu conheço. Cite um vício literário que você considera abominável. A esterilidade. Qual é a virtude você mais preza na boa literatura? Que ela nos ensina a admirar, isto é, a erotizar o mundo. Galeria Bataille: um bom pensador, mas um mau romancista Nuno Ramos: um canto sombrio sobre a humanidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.