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A beleza trágica da miséria

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Por Redação
Atualização:

Agora que estou preparando um novo filme, A Suprema Felicidade, voltam-me lembranças de minha primeira experiência com as câmeras. Em 63, fui assistente de Leon Hirszman, em um documentário no Nordeste sobre fome e analfabetismo. Nós, do Cinema Novo, tínhamos atração pela miséria, por aquele mundo magro e louco onde alguma coisa "verdadeira" devia se passar, longe da vida gorda do Sul. Outro dia uma repórter me entrevistou sobre cinema e contei essa história, que já escrevi, há uns 15 anos. Disse-lhe que o "vazio", o sertão seco tinha um rigor formal que nos evocava João Cabral, o Waste Land, de Eliot, e suprema paixão minha na época, Samuel Beckett, o escritor irlandês que eu amava por seus seres mutilados, personagens de um "nada" que a Europa nos mandava. "Havia uma fascinação estética pela miséria no Cinema Novo, não?", perguntou-me a repórter. Sim, havia. Nós, jovens intelectuais de esquerda, éramos fascinados por aquele mundo descarnado, feito de ossos e caveiras. De câmera na mão, percorremos as caatingas desertas como se estivéssemos dentro de um painel de, sei lá, Malevitch - um ?branco sobre branco? miserável. Pelas favelas do sertão, entrevistávamos camponeses, esperando grandes revelações de seu sofrimento. Mas diante da câmera, surgia apenas o "pobre homem" roubado de tudo, até da consciência de sua dor. Em vez de momentos dramáticos, só conseguíamos filmar vagos resmungos sobre ?Deus quis assim?. Os miseráveis estranhavam nossa ?compaixão?. Eles não sabiam que sua vida era ?nosso horror?. E nós víamos no miserável a esfarrapada bandeira do futuro. O nordestino pobre era para nós uma alegoria da "revolução". O miserável era nossa salvação. Um dia, chegamos à Rua do Sol - um beco sujo numa favela, a duas horas de João Pessoa. Entramos numa casa de barro, entre porcos e crianças. E, de repente, como uma explosão de luz, como uma máquina perfeita de terror e drama, tudo começou a acontecer. Num canto da casa, um velhinho magro, com o braço amputado, tremia num banco, barba branca, a pele barrenta e olhos como duas brasas vivas. Ele falava sem parar, numa algaravia indistinta, enquanto ao fundo uma velha magra ria como uma boneca mecânica de parque de diversões. No meio da sala de terra, crianças nuas choravam, outras riam e uma mulher nova, morena, falava alto, com marcas de ferimentos nos braços, como cortes de estilhaços de granada. A mulher gritava para nós: "Olha, olha lá no teto! Olha no teto os restos do menino! Ele explodiu e os restos dele bateu nos meus braços e foi avoando pro teto, me molhou tudo, não foi, mãe?" E a velhinha ria, ria como bruxa de teatro infantil e o avô sem braço tremia, e nós não entendíamos nada e eu sentia que alguma coisa maior surgia ali na sala, e a câmera rodava: "O menino tinha a cabeça grande desde que nasceu, e ela foi crescendo, crescendo, e ele ficava sempre deitado ali no caixotinho, e a cabeça dele foi crescendo do tamanho de uma melancia, e só os olhinhos olhava a gente, e tinha um povo que vinha ver e dizia que ele era enviado de Deus, e até que ontem foi aquele estrondo forte, juro, e quando eu olhei tava tudo molhado e até no teto tinha coisa dele grudada!" - berrava a mãe do bebê. A velha no fundo do barraco ria sem parar, as crianças pulavam de excitação: "Avoou! Avoou!" De um alto-falante da rua começou a sair uma valsa vienense (o que fazia o Danúbio Azul ali na suja Rua do Sol?) O clima era um misto de arrepio de pavor com agonia trágica: os gritos, os risos, os voos da câmera para o teto procurando pedaços de miolo, a valsa. O velho maneta parecia cantar uma melopeia, uma ladainha de arame e apontava com o único braço para a câmera: "Retrato? Tira retrato de mim! Eu sou o bagaço do engenho!" Ele tremia e eu também. "Meu braço ficou preso lá na engrenagem do engenho, junto com a cana e eu peguei a tremer e tremer e já estou tremendo, moço, faz 11 anos desde aquele dia em que a mula do engenho deu um arranco na roda e meu braço virou bagaço, e foi porque a mula deu um arranco com força e caiu morta, ainda dependurada na vara da moenda, e a mula eles levaram morta embora, e meu braço ficou lá no meio do melado e desde aí eu não tenho mais serventia. Eu queria ir atrás do meu braço!" A música tocava no alto-falante agudo da rua e a máquina foi se fechando, o palco foi se formando, o quadro foi se formando (o quê? Dürer, Grünewald?), uma massa de vertigem se formava no ar (o quê? Kandinski?), e a filha do homem chegou perto gritando: "Tira o retrato dos pedaços da cabeça dele lá no teto!" A velha começou a rezar alto no fundo, e o velho gritava para nós, com voz de metal: "Vocês querem me ajudar? Por que não me matam? Me mata, pelo amor de Deus! Ela não quer me matar!" "Eu não, pai, cruz credo!" - e a filha dava gargalhadas. "Me mate, seu retratista, são 11 anos sentindo dor, eu quero ir atrás do meu braço!" Eu não estava diante da tragédia clássica, em que a morte é a "moira" temida - não; ali, a vida era a morte falada. Não se tinha o medo de sair da vida; o medo era de ficar nela. "Me mate, meu companheiro!", o velho gritava, e no fundo a velha já cantava, e a valsa metálica vinha de Viena, e estava aceso ali o drama em flor dos intelectuais, ali surgiam Bosch, Sófocles, ali estava Shakespeare, finalmente a arte no meio da miséria! "Oh, céus de Munch! Oh, Goya entre os telhados!" - gemi como um pequeno-burguês emocionado. E saí com os olhos cheios d?água, que secaram assim que cheguei à luz da Rua do Sol. Até hoje guardo aquele momento de horror puro na alma (Conrad?), entre gargalhadas e mortes, sob o céu de Francis Bacon. Saí dali mais velho. "E esse material? Onde foi parar?", quis saber a repórter. Sei lá, respondi. A cena foi considerada muito ?absurdista?, muito "pequeno-burguesa" para o marxismo da época e não foi montada no filme. Éramos assim em 63.

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