A atriz saiu do laboratório diretamente para o sertão

Maria Ribeiro conta como trabalhava na Líder e, sem experiência em cena, foi convocada por Nelson Pereira dos Santos para ser a Sinha Vitória de Vidas Secas

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
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Vidas Secas é considerada a adaptação perfeita de Graciliano Ramos para o cinema. Da luz explodida, sem filtro, que expressa o sol do sertão em preto-e-branco, à "música" que se restringe ao gemido do carro de bois, tudo no filme de Nelson Pereira dos Santos remete à prosa despojada, no osso, típica de Graciliano. Há um aspecto interessante a respeito desse filme, uma das obras-primas do Cinema Novo: o processo de escolha da atriz, que faz o principal papel feminino, a Sinhá Vitória, foi dos mais inusitados. Por ocasião da homenagem aos 80 anos do cineasta Nelson Pereira dos Santos, durante o Festival de Brasília, Maria Ribeiro contou como tudo aconteceu. "Eu conhecia o Nelson profissionalmente, pois trabalhava no Laboratório Líder e ele, e outros diretores do Cinema Novo, traziam seus filmes para revelar os negativos. Ele era muito humilde, tinha família e vivia sem nenhum dinheiro, então eu procurava ajudá-lo da maneira como podia." Isso significava que Nelson, bom de papo como sempre, conseguia retirar os negativos sem pagar, deixando a dívida para ser saldada num hipotético futuro. Maria Ribeiro lembra também que Vidas Secas era o grande projeto da vida de Nelson e que ele já se aventurara, com equipe, pelo Nordeste para filmar a obra de Graciliano. Acontece que, nessa primeira tentativa, choveu muito no sertão e as vidas secas tornaram-se molhadas demais para obter alguma credibilidade na tela. No improviso, a equipe bolou um outro filme, que passou a se chamar Mandacaru Vermelho, com o próprio Nelson improvisado como ator principal. Foi com esse negativo que eles voltaram do sertão em 1961. O verdadeiro Vidas Secas ficaria para depois. Quando chegou a hora de fazer a segunda - e definitiva - tentativa, foi Glauber Rocha quem veio à Líder avisar Maria da novidade. "A senhora vai trabalhar no filme do Nelson", disse o baiano, para pasmo da funcionária, que nunca havia representado um papel na vida e dava duro para sustentar a primeira filha com seu salário. Pensou que fosse trote de Glauber, que se ofendeu com a dúvida colocada sobre sua palavra. Nelson viria no dia seguinte para confirmar. Enfrentou resistência. "Tenho um bom emprego e não quero perdê-lo", disse Maria. O diretor foi compreensivo e sugeriu que ela pedisse uma licença de uns dois meses para as filmagens, depois do que retomaria o trabalho normal. A moça foi procurar o patrão e explicou o caso. O homem respondeu que não autorizava a aventura e não estava disposto a perder funcionária exemplar para "essa loucura do cinema nacional". Mas Nelson Pereira não desistiu. Fez vazar o caso para a imprensa, que passou a fazer reportagens sobre "a atendente de laboratório que fora convidada para virar atriz, mas o patrão não deixava, etc." A pressão aumentou quando Nelson convenceu o produtor do filme, Herbert Richers, a intervir em seu favor. Richers telefonou ao patrão de Maria Ribeiro e, dessa forma, conseguiu dobrá-lo. Ele chamou a funcionária ao escritório e disse: "Olha, Maria, eles fizeram o próprio Herbert Richers ligar para mim, eu devo muitos favores a esse homem e não posso dizer não. Agora, eu vou perder uma excelente funcionária, porque sei como é o cinema brasileiro. Ele vira a cabeça das pessoas." Dessa maneira, Maria seguiu com a equipe para o sertão de Alagoas, onde o filme foi realizado. Aquilo mudou a sua vida, como previra o patrão. Diante do sucesso de Vidas Secas, as portas se abriram para a ex-funcionária. Foi a Cannes, onde o filme foi apresentado, e depois morou na Itália. Voltou a trabalhar com Nelson Pereira dos Santos muitos anos depois, em A Terceira Margem do Rio, em 1994. "Minha vida pode ser dividida entre um antes e depois de Vidas Secas", disse. Maria conta também da alegria em conviver com uma equipe que tinha Átila Iório como Fabiano, seu marido na história da família de retirantes que foge da seca, drama descrito por Graciliano em seu livro de 1938, mas ainda muito atual no Brasil do início dos anos 60. Lembra que uma das cenas mais difíceis foi quanto teve de "matar" um papagaio. Cena dura, em que a família é obrigada a comer um animal de estimação para sobreviver. Não é única morte de animal no filme. Também a cachorra Baleia sucumbe sob os tiros do fuzil de Fabiano. As imagens provocaram escândalo em Cannes. Uma condessa, da sociedade protetora dos animais, declarou que gente que matava um cão daquele jeito tinha mais é de morrer de fome. Mandaram buscar a cadela no Brasil para provar que tudo fora encenação. Baleia desembarcou na França pelas asas da Air France. Mas a condessa não se conformou. "Cachorro vira-lata é tudo igual; mataram aquela e trouxeram esta."

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