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A amizade entre Verger e Carybé

Baianos por adoção, o francês e o argentino retrataram, com precisão, a alma da Bahia

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Por Ubiratan Brasil
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O francês Pierre Verger era um homem tímido, contemplativo, afeito a pesquisas. Já o argentino Hector Bernabó, mais conhecido pelo pseudônimo Carybé, era impulsivo, participativo, decidido a viver emoções. Eles já eram homens adultos quando se conheceram em Salvador, nos anos 1940, e a Bahia logo se tornou, ao lado do novo amigo Jorge Amado, o ponto de referência básica na vida de ambos. Com Verger na fotografia e Carybé na pintura e escultura, a amizade os tornou baianos fundamentais, como dizia Amado, ''pois o baiano verdadeiro não é o que nasce, mas o que renasce na Bahia''. Juntos, eles retrataram a cultura africana dos baianos em todo seu colorido e religiosidade. Um bom exemplo está no livro Carybé & Verger - Gente da Bahia, (Solisluna Design e Editora, 168 páginas, R$ 90), o primeiro livro da trilogia Entre Amigos e que marca a comemoração dos 20 anos da Fundação Pierre Verger. Trata-se de um conjunto de imagens em preto-e-branco clicadas por Verger que receberam um tratamento com o traço colorido de Carybé, resultando em um novo trabalho. Do contraste entre o preto-e-branco e a cor resulta uma visão rica e multifacetada da Bahia ao longo de 50 anos, período em que durou a amizade entre os artistas. Segundo José de Jesus Barreto, autor do texto da trilogia Entre Amigos, a amizade dos dois nasceu numa pensão barata no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, em 1946. Carybé havia chegado à cidade, com a mulher Nancy, e se hospedado em um dos poucos quartos do local. Ele conhecera a Bahia em 1938 quando, viajando de navio desde a Argentina, colheria dados para uma reportagem sobre os lugares que visitasse para um jornal argentino. Conhecer a Bahia era um sonho antigo, desde que lera pela primeira vez Jubiabá, de Jorge Amado. Ao desembarcar em Salvador, no entanto, foi informado que o jornal havia fechado. Mesmo assim, passou oito meses na cidade, vadiando, filando cafezinhos, fazendo amizade com capoeiristas e pescadores. Impressionado com a povo, a culinária, os cheiros e as cores, Carybé prometera a si mesmo voltar, o que faria agora, ao lado da mulher Nancy. Assim, lá estava ele, em 1946, naquela pensão de qualidade duvidosa. Em um prédio ao lado, Pierre Verger, também recém-chegado à então capital do Brasil, dividia apartamento com o arquiteto e fotógrafo Marcel Gautherot. Verger viera a convite de Assis Chateaubriand, poderoso chefão dos Diários Associados, que, interessado na qualidade da imagem conseguida pela câmera do francês, planejava contratá-lo para trabalhar na revista O Cruzeiro, o que lhe garantiria uma permissão de residência. Contratado, Verger realizou uma série de reportagens sobre a histórica Salvador e suas manifestações religiosas e culturais. Antes de viajar, no entanto, foi nas mesas do refeitório da pensão barata que Verger e Carybé se conheceram. A Bahia tornou-se, assim, o tema comum das animadas conversas entre os novos amigos. Carybé mostrou-lhe desenhos e relembrou com paixão da luminosidade do céu, do magnífico azul do mar que banha o território baiano e, principalmente, da forte presença da cultura africana, que transpirava em todos os pontos da cidade. Para iniciá-lo na beleza oculta do candomblé, aliás, Carybé levou Verger a terreiros de umbanda do Rio, fazendo uma ressalva: o que o francês viria na Bahia era mais encantador. Foi o primeiro (e forte) contato entre os artistas, que se reencontraria anos depois, quando Carybé, disposto a reviver experiências baianas, retornou a Salvador em 1949. Naquela época, Verger já criara raízes, transformando a Bahia na ''casa, moradia, lugar do sonho e do repouso'', nas palavras de Jorge Amado. De fato, o francês abaianado já retratara todos os pontos de Salvador, fixando a paisagem humana e o cotidiano da cidade em sua Rolleiflex. ''Verger e Carybé convergiam seus olhares na mesma direção, para os mesmos ângulos, com os mesmos enquadramentos, captando os mesmos movimentos e registrando uma época que não volta mais'', observa Gilberto Sá, presidente da Fundação Pierre Verger, no texto de introdução do livro. Segundo ele, quando Verger e Carybé chegaram a Salvador, a Bahia vivia um momento especial de renascimento, de crescimento, de busca de afirmação e de identidade. ''O fotógrafo-pesquisador-escritor e o desenhista-pintor-escultor não só se integraram a esse processo revolucionário da época, através de seus trabalhos. Mais que isso, foram também agentes dessas mudanças, que terminaram mexendo com as mentalidades e até definindo alguns ''novos'' conceitos, como o de baianidade e de cultura negra, por exemplo, que eram impronunciáveis até então.'' O livro inclui ainda depoimentos de Jorge Amado e Rubem Braga, sobre a parceria e as correspondências trocadas entre eles, além de incluir dezenas de fotos e ilustrações e documentar suas vivências nos meandros da cultura baiana.

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