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A América nos explora e nos salva

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Por Redação
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A política envenena. O cafajestismo brasileiro mata. Agora, me refugio na grande música, nos livros clássicos, nos filmes essenciais. Outro dia vi o Ludwig e Violência e Paixão, duas obras-primas de Luchino Visconti; vi também Fanny e Alexander, do Bergman (que foi eleito o melhor filme do século 20, desbancando o Cidadão Kane pela primeira vez), e me lembrei do grande cinema. E bateu-me a verdade brutal: não sofremos apenas a poluição da atmosfera; a iconosfera, o universo de signos que nos dirigem e assolam também é irrespirável. Não dá mais para suportar calado o lixo a que a indústria cultural nos submete. Depois da morte de Antonioni, Fellini, tantos... sobrou Godard, que está vivo, mas é como se não estivesse. Onde estão os grandes artistas? Onde está a grandeza da arte européia? Não agüento mais a literatura oscilando entre best-sellers boçais ou uma pseudoprofundidade ''contemporânea'', feita de heróis perversos, percorrendo epopéias de cinismo, pop music, fast sex, desamor, como se a vida fosse um videogame sem esperanças; também não agüento mais os ''bons'' filmes americanos fingindo uma reflexão sobre o mundo atual. As corporações da cultura inventaram uma nova estratégia: nos convidam a um ''pensar'' falsamente ''crítico'', propagando uma liberdade fetichizada, uma ''democracia'' de fácil digestão - apenas uma maneira sutil de se legitimar e nos convencer de que o capitalismo ''democrático'' estaria se ''auto-analisando''. Muitos filmes chegam a copiar a aparência de ''rebeldia'': obras fragmentárias e vertiginosas, mas mantendo a base careta e lógica do velho esquematismo dramático. É a mesma coisa que fazem na economia, quando nos incitam ao mercado aberto, sem abrirem mão de um protecionismo esperto. Parecem criticar um mundo ''ilógico e pós-utópico'', mas continuam com o privilégio exclusivo de um discurso coerente. A América Corporativa é a proprietária da única ''Grande Narrativa'' ainda permitida. Os americanos chamam os europeus de ''decadentes e intelectualizados''. ''A Europa perdeu a criatividade'', dizem. O fracasso dos europeus seria devido ao seu ''esnobismo'', recusando-se ao sucesso de mercado. Dizem: ''Como são incapazes de se modernizar , os europeus se ''refugiam no passado, são elitistas...'' Para eles, a causa da crise é que os europeus se recusam a ser ''americanos'' - a Europa é ''inteligente demais'', o que atrapalha a criação artística do século 21. E o mais patético é que a arte européia vive correndo atrás de mais ''legibilidade'', mais simplismo, copiando as fórmulas americanas. A arte ''industrial'' matou seus últimos laços de amor com aspirações estéticas sérias. Nos filmes de Hollywood, acabou a época em que os realizadores respeitavam a arte da Europa. Antes, importavam diretores da Alemanha, da França para vitalizar o cinema de Los Angeles. Assim, vieram Billy Wilder, Stroheim, Sternberg, Hitchcock, Renoir, William Dieterle, Michael Curtiz, Fritz Lang... Até há pouco tempo, alguns cineastas americanos tinham fascínio por climas ''densos'', como eles imaginavam que era a ''arte européia''. Geralmente, esses filmes ficavam ridículos, como o Prêt-à-Porter, de Robert Altman ou coisas estranhas como A Insustentável Leveza do Ser, de Phillip Kaufman. Era patético ver os comedores de cachorro-quente falando do Ser e do Nada. Mas até esse louvável esforço acabou. O mercado perdeu a culpa e os ''matrixes'' da vida brilham à solta, nos restando piruetas mentais para descobrir ouro no trash, alguma grandeza em John Woo ou Luc Besson. Assim como a derrota do socialismo criou um mundo sem freios à injustiça social, chamando pobre de ''incompetente'' ou ''vagabundo'', também na cultura há um grito no ar. Na linha de um ''neo-darwinismo-para-toda-obra'', tem muito crítico americano achando que a decadência da arte européia é provocada pelos subsídios que os governos dão, pois, sem competitividade de mercado, o talento morre. O neoliberalismo na cultura diz que a culpa é dos fracos. A velha vanguarda (se ainda tem esse nome) resiste nos guetos desde 1916, desde o Cabaret Voltaire, desde o dadaísmo, alguns velhos artistas lutam pela beleza, mas parece que ninguém mais presta atenção a esses ''excluídos''. Sumiu no Ocidente o desejo de se atingir transcendência através da arte. Aliás, o que é ''transcendência''? Sempre houve uma ''bronca'' americana contra a ''profundidade'' cultural do Velho Mundo. Isso foi tema de vários musicais e chegou, paradoxalmente, a criar obras-primas como Cantando na Chuva ou Bandwagon (Na Roda da Fortuna). Não podemos esquecer que a origem popular dos filmes de Hollywood criou uma estética involuntária que revelou grandes diretores: Hawks, Fuller, Capra, Coppola. Os americanos não sabiam que sua genialidade nascia exatamente do ''superficial''. Busby Berkeley é tão importante quanto os Ballets Russes. Havia um desejo de beleza mesmo no filme comercial antigo. Hoje, não. Quem filma é o produtor; o diretor é um reles guarda de trânsito. O talentosíssimo Quentin Tarantino, que despontou como a paródia da violência com Pulp Fiction, virou uma salsicha comercial patrocinando porcarias trash com o picareta mexicano Robert Rodriguez. Sem dúvida, vivemos uma espantosa revolução horizontal nas informações, na tecnologia das comunicações, mas há um vazio vertical no pensamento. Sente-se no ar, em queixumes de intelectuais e artistas, uma fome de ''universais'', de novas utopias. Chegamos ao fundo de um poço reflexivo e é possível que alguma coisa mude, pelo próprio cansaço da matéria histórica, ao fim desta era Bush que escangalhou o Ocidente. Pode ser que - depois da fase Osama - Obama seja o indício de uma renascença. O alto nível desse homem pode ser a promessa de um novo tempo. A América tem esse duplo condão maravilhoso: nos explora e nos salva.

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