A África acordava nas ruas do Rio

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Por Redação
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O império português que transferiu sua sede para o Rio de Janeiro em 1808 espalhava-se por quatro continentes. Compreendia o território europeu de Portugal, os arquipélagos dos Açores e da Madeira, as vastidões do Brasil e os domínios na Ásia e na África. Na Ásia, reduzia-se à parte oriental de Timor, a Macau, na China, e a Goa, Damão e Diu, no subcontinente indiano. Na África, suas possessões não passavam de enclaves, alguns deles grandes, e outros pequenos e até diminutos, como o Forte de São João Batista de Ajuda, não maior do que uma chácara. O controle efetivo sobre as terras da atual Angola se restringia, no litoral, às áreas entre a foz do Lifune e a do Cuanza e entre o Rio Quiteve e a cidade de Benguela, a isso se somando, ao norte do Rio Zaire, a feitoria de Cabinda. Para o interior, os limites avançavam e recuavam conforme as circunstâncias e mal chegavam a 300 km da costa. Havia, ao longo das principais rotas comerciais, alguns presídios - assim se chamavam vilas fortificadas, onde se protegiam os mercadores. Mas esses presídios eram ilhas portuguesas em territórios controlados por africanos, e nos quais não se comerciava sem o consentimento de seus reis e pagamento de imposto. Muitos eram os sobas que os fechavam às caravanas dos pombeiros, fossem brancos, mulatos ou "negros calçados", isto é, aportuguesados. Isso não se dava somente no interior. Logo ao norte de Luanda, junto da costa, por exemplo, o régulo de Mossulo mandava como queria, após ter derrotado em 1790 os portugueses. Também as terras que dependiam de Benguela estavam envolvidas por todos os lados, exceto o do mar, por reinos africanos e deles dependiam para se abastecerem de escravos, gado, cera, mel e marfim. Ninguém mercadejava no planalto sem a aquiescência dos reis ditos ovimbundos de Huambo, Bailundo e Bié. Não era muito diferente a situação no Índico. Tanto a ilha de Moçambique quanto Sofala, Quelimane, Inhambane, Lourenço Marques e outras feitorias da costa tinham de haver-se com os sultões e xeques das várias cidades-estado suaílis vizinhas e não esquecer a proximidade protetora do sultão omani de Zanzibar. E, mal se saía das ilhas e do litoral, estava-se sob soberania africana. Sobre o Zambeze, duas cidades, Sena e Tete, hasteavam a bandeira portuguesa, e, ao longo do rio, sucediam-se os prazos (terras concedidas em enfiteuse a portugueses e herdadas por suas filhas e netas, as famosas donas, quase todas mulatas). Mas, se os titulares dos prazos ostentavam para os visitantes modos europeus, no dia-a-dia comportavam-se como chefes africanos. Num momento, acudiam ao governador de Moçambique com seus pequenos exércitos privados; noutro, não hesitavam em desafiar-lhe a autoridade. Voltando ao Atlântico, a presença portuguesa na Guiné reduzia-se a Bissau, Cacheu e alguns entrepostos no interior, controlados por mulatos, os "filhos da terra", mais africanos do que portugueses. Bissau não chegava a cem casas, a maioria simples choças de sopapo, protegidas por um forte de pedra e cercadas por uma paliçada. Dentro dela, mandavam os portugueses; no resto da ilha, os pepéis, dos quais a povoação dependia para abastecer-se de víveres. No continente, senhoreavam outros reis africanos, que tinham os portugueses como hóspedes ou tributários. Diferente era a situação dos arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, sobre os quais o domínio português se exercia em plenitude. Embora tivessem perdido importância como centros de aclimatação e revenda de escravos, continuavam a ser pontos de abastecimento para muitos dos navios que, no caso de Cabo Verde, demandavam a Guiné, e, no de São Tomé, faziam o tráfico em Angola e no Golfo do Benim. Cabo Verde exportava para o Brasil os seus tecidos feitos em teares estreitos, de grande procura entre a escravaria, enquanto São Tomé acordava, com o café, de uma longa apatia econômica. Embora nela se mercadejassem marfim, peles, cera, ouro e outros produtos, o comércio de escravos era a principal atividade de toda essa rede colonial. Só após a independência do Brasil é que Lisboa passaria a olhar para Angola, Moçambique e Guiné com outros olhos. E só no fim do século 19 se assenhorearia dos amplos territórios que viriam a figurar em seus mapas. As regras do sistema colonial determinavam que o comércio somente se fizesse entre cada uma das possessões ultramarinas e a metrópole, a qual, por sua vez, intermediaria as trocas entre elas. Havia muito, porém, a situação entre o Brasil, de um lado, e Cabo Verde, São Tomé, Angola, Guiné e Moçambique, de outro, contrariava essa regra, pois se ligavam diretamente pelo tráfico de escravos. E, desde o século 17, Angola era uma espécie de subcolônia do Brasil, regida pelos interesses do Rio de Janeiro. O alvará de d. João de 2 de abril de 1811, que anulou a legislação que vedava o comércio direto entre os portos brasileiros e os demais domínios portugueses, não fez mais, portanto, do que legalizar uma situação de fato. Em última análise, o alvará só tinha o efeito de legitimar o comércio brasileiro com a Índia. Embora proibido, não era incomum, contudo, que barcos saídos de Goa a caminho de Portugal e que paravam em Moçambique alegassem razões de emergência - falta de alimentos ou de água, doenças ou necessidades de consertos - para ancorar em portos brasileiros e neles descer, clandestinamente ou às escâncaras, parte da carga: algodões indianos, sedas chinesas, especiarias, porcelanas, móveis de vime e laca, assim como escravos que recolhiam nos litorais africanos do Índico. Em Lisboa, d.João e seus ministros recebiam constantes notícias sobre as possessões portuguesas na África. Mas, ao desembarcar no Rio, como, antes, ao descer em Salvador , ele encontrou a África a dominar as ruas da cidade. Ao olhar por uma das janelas do Paço, via todo tipo de africanos. Era, aliás, no Rio, como em outras partes das Américas, que eles eram reconhecidos e se reconheciam como africanos e não mais somente como um membro de sua aldeia, de seu reino ou de um grupo que falava a mesma língua, tinha os mesmos costumes e adorava os mesmos deuses. Gente que, no outro lado do Atlântico, jamais saberia da existência da outra aqui com ela se acotovelava. Fons trabalhavam no mesmo espaço que andongos, e se entendiam ou desentendiam angicos com iorubás, macuas com congos, libolos com hauçás. D. João se acostumaria com essa paisagem humana, que não se alteraria ao longo dos seus 13 anos de Brasil, pois, se as salas e os jardins da cidade se europeizavam, o constante afluxo de novos escravos africanos - estima-se que entraram no Rio, naquele período, cerca de 250 mil - fazia com que se robustecessem constantemente nas ruas, nas cozinhas e nos quintais as culturas africanas. Manhã após manhã, a África acordava no Rio de Janeiro.

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