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50 anos da obra-prima A Doce Vida

Para lembrar a data, o crítico e amigo de Fellini, Tullio Kezich, amplia e lança o diário que narra a trajetória atribulada do longa

Por Mariarosaria Fabris
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No dia 23 de abril de 1934: o semanário La Domenica del Corriere estampa em sua capa o desenho de um enorme peixe-lua encontrado na arrebentação, em Rimini. No fim da década de 1930, novamente em Rimini, um escritor, em seu leito de morte, despede-se de seu jovem pupilo Federico, lançando maldições. Nos anos 1950, na França, um pacato pai de família, ainda moço e sem problemas financeiros, uma tarde volta mais cedo para casa, mata seus dois filhos a pauladas e, em seguida, atira-se do décimo andar. No dia 1º de maio de 1956, uma estátua do Cristo trabalhador é transportada de helicóptero até uma praça da capital da Itália. Dois anos depois, entre junho e julho, duas crianças têm várias visões de Nossa Senhora, no campo ao redor de Terni. Em setembro de 1958, fotos de Anita Ekberg banhando-se vestida na Fontana de Trevi, ao amanhecer, são publicadas pela revista Tempo. A mesma atriz, desta vez sendo esbofeteada pelo marido Anthony Steel, é assediada pelos flashes dos fotorrepórteres (ainda não se chamavam paparazzi), na Via Veneto. No dia 5 de dezembro daquele mesmo ano, a polícia fecha uma casa noturna de Roma, onde uma dançarina turca apresentou um strip-tease. O escândalo tem as mesmas proporções do que havia sido provocado pela morte de uma jovem, numa casa de campo, durante um festim embalado por drogas, sexo e bebidas alcoólicas. O que esses fatos de crônica têm em comum? Aparentemente, nada. Só que, quando agrupados e enriquecidos com uma série de fotos, algumas recortadas de revistas, constituem o esboço de peças esparsas daquele grande mosaico da sociedade italiana que foi A Doce Vida, de Federico Fellini. O cinquentenário desse acontecimento capital para a cinematografia mundial é comemorado pelo crítico Tullio Kezich com a publicação de Noi Che Abbiamo Fatto ?La Dolce Vita? (Palermo: Sellerio, 2009), edição ampliada do diário das filmagens dessa obra, lançado sob o título de Il Dolce Film, na mesma época em que o longa-metragem estreava. Sem uma trama aparente, A Doce Vida é uma espécie de "jornal filmado" (segundo o próprio cineasta), em que nada acontece a seu protagonista, Marcello (Marcello Mastroianni), a não ser o fato de ser envolvido numa sarabanda caótica, que parece não ter fim. Como assinala Kezich, depois do sucesso de Os Boas-Vidas (1953), A Estrada da Vida (1954) e As Noites de Cabíria (1957), o diretor poderia ter repetido fórmulas já consagradas, mas preferiu arriscar e contar uma nova história, a história do Fellini do presente. Em busca do que ele chamava "atualidade interior", o cineasta, abandonada a ideia de filmar Moraldo in Città - continuação de Os Boas-Vidas -, partiu para a elaboração de um novo argumento, sempre contando com a colaboração de Tullio Pinelli e Flaiano. A questão central, porém, permanecia a mesma: uma longa jornada náusea adentro, que termina com um tênue clarão de esperança. Concebida em meados de 1958, rodada a partir de 16 de março de 1959 e lançada a 6 de fevereiro de 1960, essa obra-prima de Fellini passou por muitas atribulações. Depois da ruptura com Dino De Laurentiis, vários produtores foram sondados, até que Angelo Rizzoli resolveu bancar a empreitada, cujos custos se revelaram bem elevados para a época, mas não exagerados (cerca de 540 milhões de liras). De Laurentiis, além de discordar da escolha de um ator italiano como protagonista, descontente com o roteiro, submeteu-o à opinião de três pessoas ligadas ao cinema, que deram pareceres negativos. Uma delas, Luigi Chiarini, cobrou a falta de "forças sadias" no filme. Embora o argumento tenha sido mantido quase na íntegra, o roteiro sofreu modificações. Ciente de que essa obra seria diferente das outras, Fellini escreveu a 5 de setembro de 1958, numa carta endereçada a Brunello Rondi, um dos roteiristas de A Doce Vida: "Este é um filme impossível de ser escrito, seu ritmo, sua expressão é essencialmente figurativa." Sempre em busca de uma solução melhor, seguindo uma espécie de "roteiro interior", em que ia amadurecendo seu processo de criação, o cineasta experimentava novos enquadramentos e improvisava deixas, adaptando-os às circunstâncias de filmagem, hesitava acerca de alguns personagens, que ainda não lhe pareciam prontos para ganhar vida na tela. Foi o caso de Steiner, mentor de Marcello, que Pinelli, no roteiro, havia esboçado pensando em seu amigo Cesare Pavese (que se suicidou num hotel de Turim, na noite entre 26 e 27 de agosto de 1950), mas que Fellini concebeu a partir de outras motivações. A composição do intelectual suicida e de seu entorno foi cheia de reviravoltas. Por fim, Steiner será o profeta que anuncia uma nova era: sua mente e seu espírito se projetam para o futuro; ele, porém, é incapaz de posicionar-se concretamente na época em que vive. É um ser indefeso, solitário, mas de uma "solidão positiva, cheia de intuições", de uma felicidade fora dos padrões convencionais, vivida em tom menor, num ambiente em que a cultura não era ostentada, como especificava Rondi. A definição do intérprete também foi demorada; por fim, a escolha foi determinada por Pier Paolo Pasolini, que já havia colaborado com Fellini em As Noites de Cabíria. Para o escritor, Alain Cluny não destoaria naquele ambiente de refinada burguesia que estava sendo construído ao redor do personagem. A expectativa criada pelos inúmeros artigos dedicados ao longa-metragem antes da estreia acabou por preocupar seus realizadores; contudo, apesar da grande polêmica que se travou, o público afluiu e o filme transformou-se num enorme sucesso. Embora vários intelectuais tenham se posicionado a favor da produção felliniana, como Alberto Moravia e Pasolini, não foram poucos seus detratores. Roberto Rossellini, à saída da projeção, olhou para Fellini como Sócrates teria olhado para seu discípulo Críton, repentinamente ensandecido, nos dizeres do próprio cineasta, que havia trabalhado com o pai do cinema moderno entre 1944 e 1949. Luchino Visconti, referindo-se à sequência no palácio quinhentista, declarou: "Aqueles são nobres vistos pelo meu criado." Vittorio De Sica considerou o filme "o sonho de um provinciano". A reação da tríade do neorrealismo mostra bem a dificuldade de se aceitar o fim daquele movimento que havia animado a produção peninsular no segundo pós-guerra do século 20. A passagem de uma geração a outra será difícil até para Fellini: tendo fundado a produtora Federiz (em parceria com Rizzoli) em consequência do êxito de A Doce Vida, deixará de financiar Desajuste Social, de Pasolini, O Posto, de Ermanno Olmi, e Bandidos em Orgosolo, de Vittorio De Seta, por não entender a importância dessas obras, as quais, como recorda Kezich, foram saudadas como a renovação do cinema italiano, no Festival de Veneza de 1961. Como era de se esperar, a resposta mais violenta ao filme foi a da Igreja Católica: L?Osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, condenou-o, enquanto, dos púlpitos, os padres lhe lançavam anátemas e no portal de uma igreja de Pádua, uma espécie de anúncio fúnebre convidava a rezar pela alma do pecador público Federico Fellini. Vários intelectuais de esquerda, no entanto, consideraram A Doce Vida uma obra católica. Apesar de ser um retrato minucioso e desencantado da sociedade italiana da época, segundo o cineasta, seu longa-metragem não era nem moralista, nem pessimista: "A Doce vida, para mim, é um filme que deixa uma sensação de letícia, uma vontade enorme de novos propósitos. Um filme que dá coragem, no sentido de saber encarar a realidade com um novo olhar e não se deixar enganar por mitos, superstições, ignorância, baixa cultura, sentimentalismo." Não é Paolina (Valeria Ciangottini), com o seu doce sorriso no fim, a "força positiva" do filme de Fellini, mas a presença luminosa de Anita Ekberg, que, como sublinha Kezich, explode na sequência da Fontana de Trevi, carregada de vitalismo panteístico. Alegria de viver. Doce vida.

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