Foi assim, por exemplo, em Salve, Malala! (2017), em que duas crianças, Sofia e Yan, que vivem em uma aldeia, decidem brincar dentro da escola em que estudaram. A partir daí, começam a lembrar histórias de alguns professores e outros conhecidos, que enfrentaram e resistiram às ordens de um rei autoritário e mandão. Livremente inspirado na história da paquistanesa Malala Yousafzai, que foi vítima de um atentado por defender o direito das meninas de ir à escola, o espetáculo se pautou ainda pelas ocupações feitas por alunos em diversas escolas, especialmente em São Paulo, na luta por melhores condições de ensino. A história equilibra com raro talento noções de cidadania e elementos lúdicos. O espetáculo ganhou o Prêmio São Paulo de Incentivo ao Teatro Infantil e Jovem daquele ano.
Já em Existo! (2019), o personagem é Luan, garoto que vive confinado no alto de uma torre ao lado da mãe, uma costureira. Lá, enquanto aguarda ansioso a chance de descer e conviver com outras crianças que observa à distância, ele brinca com as roupas criadas pela mãe, independente se o modelo é normalmente usado por homens e mulheres. Assim, enquanto conversa com os pequenos animais que o visitam (como um pombo incapaz de enxergar) e o ajudam em sua busca por uma identidade, Luan revela uma personalidade pouco presa à convenções - não se considera, por exemplo, apenas um menino. Novamente, um tema delicado é tratado com criatividade e respeito. A peça ganhou o Prêmio APCA de melhor espetáculo infantojuvenil com a temática identidade de gênero em 2019.
Agora, para comemorar seus 15 anos de trajetória, a Cia La Leche apresenta o projeto Paisagens Antes do Fim, composto por três curtas-metragens que serão apresentados no canal de YouTube do grupo, a partir deste sábado, 4. Novamente, um tema urgente inspira os espetáculos, como a devastação do meio ambiente e as sérias consequências que isso pode trazer.
Assim, em Quando a Terra Queima (que será exibido às 16h deste sábado, 4), uma espantalha e um espantalho estão presos ao solo cuja secura e desesperança foram provocados por uma queimada. Postados ao lado de uma linha de trem, os dois aguardam a chegada de alguém que possa mudar sua rotina. Com ecos de Esperando Godot, peça clássica de Samuel Beckett, o vídeo foi rodado em Guaianases, especificamente em um campo de futebol de terra batida. Em meio a tanta desesperança, o texto mostra que um possível caminho para o crescimento está na arte.
Já Quando o Ar Falta (exibição no domingo, 5, às 16h) traz um casal de velhinhos, Socorro e Esperança, que somam milhões de anos de vida morando dentro de uma baleia jubarte. Os dois ouvem Ode à Alegria, da Nona Sinfonia de Beethoven, em um gramofone enquanto preparam uma festa de aniversário. Novamente são personagens que se agarram à esperança de algo que possa mudar para melhorar suas vidas, uma resiliência necessária à grande maioria da população brasileira. O curta foi gravado em uma praça flutuante construída em cima da represa Billings, que recebe a comunidade para o lazer, passeio com seus bichos, encontros e desejos de navegar na água que se esgota.
Finalmente, Quando o Mar Seca (exibição na segunda, 6, às 16h) acompanha a caminhada de um casal de pinguins que, guiado pelas estrelas, busca também uma solução para a continuidade da vida, em que icebergs estão derretendo. O curioso é que pequenas estrelas cor de rosa no céu são na realidade os cocôs dos pinguins. O episódio foi gravado na Brasilândia, em uma construção apocalíptica, que planejava ser um planetário. Este local deixou como marcas uma estrutura incompleta, árida, concreto puro sem a possibilidade da presença humana para nenhuma diversão ou entretenimento.
Assim como Salve, Malala! e Existo!, os trabalhos têm a dramaturgia de Alessandro Hernandez, que também está em cena ao lado de Ana Paula Lopez. A direção geral é de Cris Lozano. O roteiro dos três curtas foi desenvolvido durante o isolamento social provocado pela pandemia da covid-19 - e o que os une são personagens que, embora distintos, estão todos em busca de novas formas de existência em um planeta em perigoso processo de destruição.
"A dramaturgia aponta as possibilidades de criar novos mundos através da imaginação com personagens icônicos que revelam a proximidade da tragédia que se aproxima com o fim do planeta", comentam Cris Lozano e Alessandro Hernandez, reforçando que a obra foi concebida para expor a urgência desse tema para crianças, adolescentes e pessoas de qualquer idade. A Cia se inspirou nos pensamentos de ativistas ambientais como Greta Thunberg, Eliane Brum, Davi Kopenawa e Ailton Krenak e em notícias veiculadas sobre o modo como o ser humano vem lidando com as urgências do tempo atual.