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Na cena e na escrita

Cia La Leche festeja 15 anos com vídeos que refletem sobre devastação ambiental

Seria injusto classificar a Cia La Leche de teatro como um grupo especializado em peças para o público infanto e infantil - sim, em cena, é possível ver cenário e figurino com uma tonalidade e um desenho que encantam principalmente o olhar dos mais jovens. Também a trilha sonora costuma trazer melodias que incentivam as crianças. Mas, a dramaturgia, a forma de contar as histórias e, principalmente, o assunto que inspira as tramas, tudo traz um tom crítico que evita que as produções da companhia se pareçam a histórias da carochinha ou apenas fábulas.

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Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
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Foi assim, por exemplo, em Salve, Malala! (2017), em que duas crianças, Sofia e Yan, que vivem em uma aldeia, decidem brincar dentro da escola em que estudaram. A partir daí, começam a lembrar histórias de alguns professores e outros conhecidos, que enfrentaram e resistiram às ordens de um rei autoritário e mandão. Livremente inspirado na história da paquistanesa Malala Yousafzai, que foi vítima de um atentado por defender o direito das meninas de ir à escola, o espetáculo se pautou ainda pelas ocupações feitas por alunos em diversas escolas, especialmente em São Paulo, na luta por melhores condições de ensino. A história equilibra com raro talento noções de cidadania e elementos lúdicos. O espetáculo ganhou o Prêmio São Paulo de Incentivo ao Teatro Infantil e Jovem daquele ano.

Os atores Ana Paula Lopez e Alessandro Hernandez. Foto Cris Lozano Foto: Estadão

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Já em Existo! (2019), o personagem é Luan, garoto que vive confinado no alto de uma torre ao lado da mãe, uma costureira. Lá, enquanto aguarda ansioso a chance de descer e conviver com outras crianças que observa à distância, ele brinca com as roupas criadas pela mãe, independente se o modelo é normalmente usado por homens e mulheres. Assim, enquanto conversa com os pequenos animais que o visitam (como um pombo incapaz de enxergar) e o ajudam em sua busca por uma identidade, Luan revela uma personalidade pouco presa à convenções - não se considera, por exemplo, apenas um menino. Novamente, um tema delicado é tratado com criatividade e respeito. A peça ganhou o Prêmio APCA de melhor espetáculo infantojuvenil com a temática identidade de gênero em 2019.

Agora, para comemorar seus 15 anos de trajetória, a Cia La Leche apresenta o projeto Paisagens Antes do Fim, composto por três curtas-metragens que serão apresentados no canal de YouTube do grupo, a partir deste sábado, 4. Novamente, um tema urgente inspira os espetáculos, como a devastação do meio ambiente e as sérias consequências que isso pode trazer.

Assim, em Quando a Terra Queima (que será exibido às 16h deste sábado, 4), uma espantalha e um espantalho estão presos ao solo cuja secura e desesperança foram provocados por uma queimada. Postados ao lado de uma linha de trem, os dois aguardam a chegada de alguém que possa mudar sua rotina. Com ecos de Esperando Godot, peça clássica de Samuel Beckett, o vídeo foi rodado em Guaianases, especificamente em um campo de futebol de terra batida. Em meio a tanta desesperança, o texto mostra que um possível caminho para o crescimento está na arte.

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Ana Paula Lopez e Alessandro Hernandez no vídeo Quando a Terra Queima. Foto Cris Lozano Foto: Estadão

Quando o Ar Falta (exibição no domingo, 5, às 16h) traz um casal de velhinhos, Socorro e Esperança, que somam milhões de anos de vida morando dentro de uma baleia jubarte. Os dois ouvem Ode à Alegria, da Nona Sinfonia de Beethoven, em um gramofone enquanto preparam uma festa de aniversário. Novamente são personagens que se agarram à esperança de algo que possa mudar para melhorar suas vidas, uma resiliência necessária à grande maioria da população brasileira. O curta foi gravado em uma praça flutuante construída em cima da represa Billings, que recebe a comunidade para o lazer, passeio com seus bichos, encontros e desejos de navegar na água que se esgota.

Finalmente, Quando o Mar Seca (exibição na segunda, 6, às 16h) acompanha a caminhada de um casal de pinguins que, guiado pelas estrelas, busca também uma solução para a continuidade da vida, em que icebergs estão derretendo. O curioso é que pequenas estrelas cor de rosa no céu são na realidade os cocôs dos pinguins. O episódio foi gravado na Brasilândia, em uma construção apocalíptica, que planejava ser um planetário. Este local deixou como marcas uma estrutura incompleta, árida, concreto puro sem a possibilidade da presença humana para nenhuma diversão ou entretenimento.

Assim como Salve, Malala! e Existo!, os trabalhos têm a dramaturgia de Alessandro Hernandez, que também está em cena ao lado de Ana Paula Lopez. A direção geral é de Cris Lozano. O roteiro dos três curtas foi desenvolvido durante o isolamento social provocado pela pandemia da covid-19 - e o que os une são personagens que, embora distintos, estão todos em busca de novas formas de existência em um planeta em perigoso processo de destruição.

Alessandro Hernandez e Ana Paula Lopez no vídeo Quando o Ar Falta. Foto Cris Lozano Foto: Estadão

"A dramaturgia aponta as possibilidades de criar novos mundos através da imaginação com personagens icônicos que revelam a proximidade da tragédia que se aproxima com o fim do planeta", comentam Cris Lozano e Alessandro Hernandez, reforçando que a obra foi concebida para expor a urgência desse tema para crianças, adolescentes e pessoas de qualquer idade. A Cia se inspirou nos pensamentos de ativistas ambientais como Greta Thunberg, Eliane Brum, Davi Kopenawa e Ailton Krenak e em notícias veiculadas sobre o modo como o ser humano vem lidando com as urgências do tempo atual.

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