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Arte, aqui e agora

'The Square', um filme escandaloso que faz bem!

Quando a inteligência alia-se ao humor, à erudição, à lucidez e a um talento excepcional fica difícil não criar uma obra de gênio que divida as pessoas. É o caso de 'The Square' do sueco Ruben Östlund vencedor da Palma de Ouro em Cannes deste ano: um filme que já é cult.

Por Sheila Leirner
Atualização:

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Entrou em cartaz há pouco e, é claro, logo fui ver. Não há uma só pessoa que tenha ligação com a arte, a sociedade e o mundo de hoje que não seja concernente. Além de que este trabalho tem tudo a ver com o que estamos presenciando no Brasil e no resto mundo, em nossos dias: a banalidade da indiferença social, a censura na arte, a incompreensão e o desvirtuamento de palavras e imagens.

A intriga já foi mais do que contada: um conservador-chefe de museu divorciado (Christian, interpretado por Claes Bang), pai de duas meninas, é roubado em ardil de carteiristas e sai em busca do seu celular. Todo o resto, desastroso - e a revelação do seu caráter e personalidade - decorre daí.

Muitos viram o filme como farsa ou caricatura, para mim é uma comédia sagaz que trata de questões candentes como a imigração, a miséria, a compaixão e a indiferença, porém a sua complexidade e riqueza, são tão mais extremas quanto maior for a experiência do espectador.

Assim, quem não possui experiência com a arte contemporânea por exemplo, jamais compreenderá que, em vários momentos, o filme se transforma em uma "narrativa em abismo" (Mise en abyme). Uma obra de arte dentro de uma obra que contém uma narrativa sobre arte dentro de si.

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Quem não possui a compreensão da ambiguidade, o sentido da nuance e pensa que as coisas são ou devem ser totalmente brancas ou totalmente pretas, também não compreenderá que se trata de uma indagação e uma viagem pela alma humana, que é incoerente em essência. Isto está evidente em todos os personagens, sobretudo no principal.

Quem não possui a prática do mundo de hoje com as suas contradições - onde a doxa, as ideologias e os bem-pensantes raramente são questionados ou ao contrário, glorificados - dificilmente poderá concluir que esta obra prodigiosa, de fina ironia, conseguiu colocar-se no espaço imparcial, que é de onde observa tudo que ocorre.

Já no começo, Christian cita rapidamente Robert Smithson, (1938 - 1973)grande teórico e artista. Fica subentendido que as suas obras minimalistas e de "land art" poderiam ser vistas como precursoras de The Square, nome da instalação que representa a próxima exposição deste museu imaginário.

Ele cita também o livro de Nicolas Bourriaud, ex codiretor do Palais de Tokyo em Paris, A Estética relacional que todas as pessoas do ramo, eu inclusive, temos em nossas bibliotecas. "Estética relacional" é um movimento (ou teoria) da arte contemporânea, nascido em 1995, que focaliza certas obras em função das relações inter-humanas que elas possam representar, produzir ou provocar.

Inúmeros artistas se inscrevem na "Estética relacional". Dominique Gonzalez-Foerster, Vanessa Beecroft, Carsten Höller, Pierre Huyghe, Maurizio Cattelan, Liam Gillick, Douglas Gordon, Gabriel Orozco, Philippe Parreno são apenas alguns. Trata-se de um conceito com o qual Östlund, evidentemente, pretende definir a obra (fictícia) "The Square", no filme. Isso esclarece não só esta obra, mas a razão pela qual o seu assunto está relacionado aos assuntos do filme, externos à ela.

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Lembra infelizmente o que ocorre hoje no Brasil

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Mas o verdadeiro assunto do filme não é a arte contemporânea. Tudo é apenas um pretexto para falar do comportamento aberrante e da má consciência da sociedade diante da miséria humana, uma preocupação que é constante na Suécia.

A crítica mais virulenta do filme não vai para a arte ou o mundo da arte contemporânea. Ela é dirigida às agências de comunicação e aos jornalistas, que ele demole sem dó.

The Square é cheio de suspense, com uma direção de atores excepcional, a naturalidade deles é surpreendente. A fotografia, o som e os cenários são de mestre; o filme é longo, pesado, incomoda, no entanto as situações são inteiramente plausíveis.

Até mesmo o jantar de gala onde um "artista" atua como macaco embaraçando os convidados, foi inspirado em uma performance nos anos 1990 em Estocolmo, onde o performer Oleg Kulik, imitava um cachorro, molestava os participantes e chegou a morder a filha do conservador a ponto de ele ser obrigado a chamar a polícia. O final da cena com Oleg, o homem-macaco (Terry Notary) é muito pior e lembra, infelizmente, o que ocorreu com a "Queermuseu" em Porto Alegre, a performance do MAM, em São Paulo, e a censura do Masp.

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O momento cômico em que vemos um agente de limpeza aspirar uma obra composta de fragmentos não é nenhuma novidade. Foi o que aconteceu de fato quando uma faxineira jogou uma obra de Robert Rauschenberg no lixo, ou quando outro agente de limpeza de um museu italiano "limpou" a instalação das artistas Goldschmied & Chiari, em 2015, pensando que aquilo eram "restos de festa".

A exposição The Square que, no filme, é "criada por uma artista argentina", divide os visitantes em duas categorias: os que têm ou não têm confiança. Ora, no Palais de Tokyo justamente, em 2005, um artista peruano tinha imaginado duas filas, como nos aeroportos: uma para passaportes franceses e outra para imigrantes, onde os franceses é que eram controlados. Uma situação invertida para que os visitantes sentissem o mesmo mal-estar dos oprimidos. Mesmo o cenário no filme é muito parecido. Não seria de admirar se Ruben Östlund tivesse visitado a mostra.

Este é um cineasta que evidentemente possui bases literárias, conhece a psique, reflete profundamente sobre questões sociais e políticas, sabe muito sobre música, cinema, arte e fotografia. The Square está repleto de referências e iscas para reflexão. No século 19 "arte total" era a ópera, no século 21 é o cinema. Até a próxima que agora é hoje e não existem mais cineastas de gênio que não saibam se movimentar simultânea e confortavelmente em todos os campos do conhecimento e da cultura!

 

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Cena magistral entre Christian (Claes Bang) e Anne (Elisabeth Moss), onde há "narrativa em abismo". Um dos happenings do filme, onde o som tem papel fundamental.

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[embed]https://youtu.be/NaBTxBmc7vY[/embed]

Mais uma cena onde há "narrativa em abismo". Performance inspirada em outra, real, ocorrida em Estocolmo, nos anos 1990.

Músicas de The Square

 

"Genesis" - Justice

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"No Good" - Fedde Le Grand and Sultan + Ned Shepard

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J.S Bach / The Swingle Singers 

[embed]https://youtu.be/k0tgEi_Kg3E[/embed]

"How Deep Is Your Love" - Calvin Harris & Disciples

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"Djembe Jamave" - Jumping Drums

"Chains" / "Run Amok" - Amok

"Improvisation" - Bobby McFerrin

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